sexta-feira, julho 28, 2006

As crianças da rua Clara de Araújo

# Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze...

As crianças da rua Clara de Araújo procuraram os lugares mais inusitados para se esconderem.

Hugo escolheu a mangueira da casa 679, Juliana o Fiat Uno, Pablo a lata de lixo azul que fedia a bananas podres. Camila o portão da tia de Hugo, Caio os caixotes de papelão que guardaram a geladeira nova da mãe de Pablo.

Mas Daniel foi além e encontrou entre o campo de futebol e a padaria que estava se estabelecendo ali, um túnel de madeiras. Fabio cara de caramujo nunca o encontraria. Ele ouvira ao longe “Noventa e três, noventa e quatro, noventa e cinco”. Encolheu-se mais, adentrando a escuridão. O chão frio da terra tocava sua pele clara, sujando seu short de tactel.

# 97, 98, 99, 100! Lá vou eu!

Daniel conteve seu risinho de vitória. Pablo foi o primeiro a ser encontrado. Por mais que tentasse só conseguia segurar a respiração por 25 segundos e o latão azul exalava um odor muito fétido. Seu recorde foi 27. A mais difícil foi Juliana.

Quando todos já tinham cansado de procurar, começaram a chamar pelo nome de Daniel.

“Seria mais divertido se eu desse um susto neles!”

Encolheu-se mais. A única coisa que brilhava no escuro do túnel eram duas listras brancas de sua blusa. As crianças da rua Clara de Araújo se dispersaram. Daniel esperou por uma hora e adormeceu. A terra era acolhedora. Os piolhos de cobra faziam cócegas em suas unhas. Tampou os ouvidos para que eles não entrassem. As pálpebras pesaram. Os burburinhos dos seres intraterrenos o ninaram. Era encantado ver o trabalho das criaturas naquele túnel. O toque pulsava.

Acordou sobressalto, seu pé fora puxado.

“Caracoles! Fabio me encontrou”.

# Tá, já tô saindo.

Puxou o pé, mas a perna fora enroscada.

# Me solta, Fabio!

A resposta veio com o apertão na perna. Seu pé foi puxado novamente. Daniel tentou bicar com o outro pé, mas as duas pernas foram presas. Seus ossos estalaram. Estava escuro, mas Daniel viu que o sangue se concentrava.

# Fabio?

Ele empalideceu.

# Ju? Pablo? Camila? Caio?

Somente a terra. Algo quente molhava sua barriga. Movimentou-se, mas o aperto foi tão forte que quebrou em três partes seu fêmur.

# Socorro! SO-CO-RRO! Socorro!

Quanto mais ele se desvencilhava, mas o abraço crescia. Primeiro o fêmur, depois a bacia triturada. A dor o fez desmaiar. Quando abriu os olhos, vozes ao longe. Já amanhecia. Tentou mexer os braços, mas também estavam presos. Apesar do sangue roxo, era quente o abraço. Pulsava vida. Não conseguia chorar, a respiração era fraca. Daniel sabia, um movimento a mais e o abraço subiria e esmagaria a garganta. Sentiu-se claustrofóbico, o abraço espetava.

Desviou o pensamento para o número de piolhos. Um. Dois. Tossiu. Um estalo. Os seres intraterrenos calaram-se.

O abraço foi se afrouxando. Já era dia.

Do túnel, um ofídio, em espetacular dança, réptil pertencente à sub-ordem dos lagartos que detecta as vítimas pela percepção do movimento e do calor e que se alimenta de pequenos mamíferos, ziguezagueou fugindo da luz.

Acharam o corpo três dias depois, repleto de piolhos de cobra. As crianças da rua Clara de Araújo não brincam mais de pique-esconde.



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