terça-feira, junho 24, 2008

Celular

Pingava sangue da caixa de luz. Espesso, pesado, humano. Demorou meio segundo para Alice perceber que outra gota caía. Olhou para o poste. Atingiu os cílios. Pesou. Ao coçar, espalhou o líquido pela pálpebra. As trilhas cerebrais disputaram mente e corpo. Ao ver o vermelho, lembrou-se de suas unhas que cresciam como visualizações do Youtube. Com o anelar pressionou a tatuagem em sua pele braçal e ativou a tela. Um rosto masculino materializou-se dentro de um pequeno vídeo digital coberto de gotículas sanguíneas.

# Oi – ela disse.
# Por que você não ligou antes? – ele perguntou.
# Tava sem sinal – ela disse.
# Tava comendo pombo? – ele perguntou.
# Nunca. O pombo é a criação mais nojenta que existe – ela disse.

Cheiro estranho, sensação contínua.

# Tá aí? – ele perguntou.
# Oi – ela disse – Não estou te ouvindo.
# Isso tem acelerado meu processo de calvície – ele gritou – Anda! Fala logo!
# Tá – ela respondeu – Eu só liguei para dizer que...

O poste tombou. Atingiu o vídeo, atingiu a unha. Abaixo dele, migalhas espalharam-se pela calçada. Era perto do Parque da Colina. Pombos foram avivados. Voaram para lá e beliscaram todas as carnes. Só as migalhas.



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sexta-feira, junho 06, 2008

Sinfonia

Ele sugou eletricidade como quem aspira milk-shake e suas veias engordaram na hora. Os braços ficaram pesados e uma mosca rondou bem perto de sua narina, podendo fazer uma leve cócega sobre a pele. Cientista, cineasta ou vendedor de camelô, tanto faz. A vida era um filme de celular. Granulado, mas que atinge a todos.

Escravos são os consumidores, os livres não têm nada – ele sempre dizia para Lília. Ian Meco Cezar Reis costumava embaçar o espelho com seu bafo e escrever poemas manipuladores no banheiro do boteco de Lília Azeredo Leão, menina tímida que tinha perdido o pai em uma máquina de uma fábrica de cilindros para gases e que com a indenização abrira o Bananal – o único bar que vendia cachaça de banana brasileira. Ian Meco costumava passar lá para aquecer os lábios, sugar eletricidade e sair dando choque nas pessoas que tinham mais de 10 reais no bolso. Era um idealista. Daqueles que acreditam que trabalho é desemprego remunerado e desemprego é trabalho não-remunerado. Lília Azeredo Leão achava graça porque seu bar sempre enchia quando ele aparecia. Apostas alcoólicas sempre aconteciam. Quem tinha mais grana no recinto sempre despertava com a eletricidade descarregada. Ian Meco às vezes inchava tanto que muitos achavam que poderia morrer a qualquer momento.

Nunca de cirrose – ele sempre dizia. Um dia, um dia de frio com sol, ele chegou no bar e Lília sorriu mostrando seu novo celular Motorola 36 prestações sem juros explícitos. Ao pegar no aparelho uma onda de choque conectou os dois, leve flutuação que durou meio segundo. Mas ao bater os pés no chão, a descarga elétrica atingiu Lília que caiu imóvel. Ian Meco porém, engordou. Sem saber o que fazer, apertou os diversos botões do celular e começou a tirar fotos panorâmicas da recente defunta. Suas veias engrossavam. Ele largou o aparelho. Pegou a garrafa de cachaça em cima do balcão e saiu do local. Ao perpassar a esquina, sua barriga tinha dobras de banha. Quanto mais ele jogava cachaça em sua superfície estomacal mais pregas de pele se formavam. Enquanto ao fundo uma barraquinha de camelô tocava uma sinfonia de funk, a vida de Ian Meco virava filme de celular. Granulado, mas que atingia todos.



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