domingo, abril 27, 2008
Gordos e Grandes
Ana Paula Ferraz costumava comer sonhos. Gordos. Grandes. Sua ambição era uma orgia em camadas. Deliciosamente recheadas com doce de leite. Um dia encontrou João Alexandre Ferraz. Ele odiava comer sonhos. Gordos. Grandes. Sua ambição era uma orgia em forma de churros. Deliciosamente recheados com doce de leite. Esbarraram-se em um bar de esquina. Estavam com as mãos sujas de guardanapos de botequim. Ela ofereceu o sonho. Ele o churros. Não aceitaram. Mas beberam caldo de cana até o amanhecer. Ana Paula encontrou uma baratinha cascuda no último copo oferecido por João Alexandre. Gorda e grande. Fingiu não ver. Se comiam baratas na China, mal nenhum faria deixá-la adoçando a bebida. Porém quando ele levantou-se para ir ao banheiro, ela pegou a danada da cascuda e colocou no churros dele. Estava disposta a matar esse gosto nojento por churros. Ao encostar no doce de leite, a cascudinha mexeu-se. Antes de sair do banheiro, João Alexandre passou no balcão e vendo uma mosca gorda e grande, decorou o sonho de Ana. Acabaram comendo os bichos e nunca mais voltaram ao bar. Dizem que eles vendem receitas apetitosas pela Internet. É só procurar no Wikipedia.
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terça-feira, abril 15, 2008
A pele que tinha o fogo do juízo final
Ela estava longe do conceito ‘a visão acarreta o saber’. Para ela, a sensação acarretava a certeza do momento. Muitas vezes o deleite era angustiante porque poderia acontecer em qualquer lugar.
Chovia. Abril. Sentou-se perto da janela. Ônibus com motorista trocador. Vidro rabiscado por sujeira. O sono a sacudia, olhos ardiam quando cílios se movimentavam. Dobrou a retina. Então o braço sentou-se. Estava coberto por uma camisa branca social, fina, com pouco poliéster. A pele gritou. Os pêlos entraram em vigilância. O braço dele encostou-se no dela. Automaticamente os poros se abriram, a química pousou na forma invisível que estava dentro dos corpos. Permaneceram na potência ímã, acalentados pela linha tênue de não se conhecerem.
Ela fechou os olhos. Mistura de choque químico, ligações de pele e sono. A viagem durou 20 minutos em caldo quântico. O braço dele a sentiu por dentro. Proteção, paz e desejo de furar a alma, mesmo o mundo sujo lá fora. O ônibus sacolejava. Às vezes os braços se separavam. O vazio dos segundos dilatavam a energia pulsante. Me toque, ela pensava. Me deixe sentir. Às vezes braço, antebraço, cruzamento invisível. Ela o experimentou. Um momento.
Quando o ônibus parou e eles se separaram, carregavam no rosto o desejo de um pouco mais e um sorriso implícito. Ela passaria o resto da existência reconstruindo a memória do passado. Quando atravessou o sinal na faixa de pedestres observou pelo canto do olho o braço desaparecer. Gotículas de H2O fora do céu. Ela olhou para seu pulso. Tinha uma marca. Suas veias pulsavam verde-água. Ela enfim tinha aceitado o momento. Depois sentou no banco e foi contar suas moedinhas, precisava de 25 centavos para comprar um doce de leite.
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sábado, abril 05, 2008
Formigas Ruivas
Sentou-se na escada de chão vermelho. A menina que usava saias abraçou os joelhos. Escorriam por suas pernas formigas ruivas. Não chicoteavam, nem dançavam, mas estavam magnetizadas pelos pêlos humanos.
Chegue mais perto – ela sussurrou. Se aqueça nessa casa de porta azul, a manhã já se foi, mas ainda temos chimarrão. Como assim era proibido colecionar envelopes transparentes?
A barra da saia dela estava desfiada, arranhada com pozinho de inocência. Chegara pelo correio, órgão quase extinto, que ela havia burlado a Lei do Incolor.
A Lei do Incolor fora decretada contra pessoas que possuíam o desejo de ouvir o silêncio, de escrever cartas cristalinas, de mandar emails límpidos. O mundo todo tinha cores, estar transparente era uma ofensa.
A Lei do Incolor a obrigou pintar suas correspondências. Colorir, encher de azul, misturar o amarelo, sujar-se de branco. Tintas foram usadas e reusadas. Seus dedos foram mergulhados em um grande latão. Quando a Lei se foi, ela voltou a sentar na escada de chão vermelho. Escorriam por suas pernas formigas ruivas.
Chegue mais perto – ela pensou. As formigas não chicoteavam nem dançavam. Estavam magnetizadas. A menina que usava saias botou a língua para fora da boca. Um minúsculo envelope transparente, umedecido pela saliva fora retirado do interior bucal pelas formigas. Ela não mais tocaria na transparência, mas poderia ver ao longe a diafaneidade ser enterrada.
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