segunda-feira, julho 24, 2006
A última abduzida
Corina acordou na estrada. Mosquitos zumbiam em seu ouvido esquerdo. Botou a mão no rosto, escondendo-se do sol. “Odeio protetor solar”, pensou. “Por que não nasci na Groelândia?” - resmungou. Era duro ter uma vida backpacker. Uma filosofia de não materialismo. A primeira coisa que perguntavam quando ela pegava uma carona era se ela era lésbica, se queria preto ou branco ou se tinha tido alguma decepção na vida.
“Eu fui abduzida”, era o que sempre dizia.
Ela foi entender que a palavra abduzida tinha muitas definições em diferentes línguas. Muitos entendiam como estupro, outros como uma doença e alguns achavam que se tratava de milagre. Ela usava o antigo óculos rayban da avó e Fator 30.
Hoje ela precisava de água, água potável. Água limpa. Tinha ouvido na TV da cidade passada que a água estava contaminada. Gripe do peixe. Desde então só água com gás pelos botequins da vida. Hoje, porém, precisava de água pura.
“Calor dos infernos”, murmurava.
Andou milhas americanas, quilômetros brasileiros e pedaços europeus, mas não encontrou bebedouro nem alma condizente com sua vontade.
“São Longuinho, são Longuinho, se eu achar alguém que me dê um pouco de água, dou 10 pulinhos”.
“Ok, 10 pulinhos a cada 2m”.
Nada.
“Vida longa àqueles que possuem piscina em casa!”
Na estrada, um jipe passou. Poeira levantou. Um cara foi jogado pro lado da grama. Usava uma medalhinha com uma imagem. Corina não conseguia decifrar o que era. Seu rosto estava banhado de suor. Ele pegou uma garrafa de água, jogou inteira em seu rosto.
# De lafaard! Snak leven naar domheid!
E o jipe avançou com uma buzina raivosa. Corina perdeu uma possibilidade de andar menos.
# Wat is op, meisje?
Tudo que ela não queria estava acontecendo. Tudo, inclusive encontrar um holandês.
# Ik haat Nederlands, ela respondeu.
O cara da medalhinha gargalhou.
# Eu também!
“Não, pior que holandês. Um brasileiro”.
Corina caminhou apressadamente.
# Sei que é brasileira, que odeia holandês e que é uma backpacker. Dia difícil, não?
Corina retirou a tampa do desodorante em seu bolso. Se ele chegasse 2 metros mais próximo, ela estrearia o Axe novo.
O sol fervia.
# Sei também que não é muda. Não sou um louco, nem serial killer. Vida longa aos mochileiros.
Ok, ela tinha que parar. Era um lema. Porra de um lema inventado em um subúrbio que floresceu no mundo como o Paz e amor dos hippies.
# Rafael. Brasil.
# Corina. Mundana.
Rafael gargalhou.
# Você é brasileira, eu sei. Só os brasileiros usam óculos desse tipo.
Pois bem, ele era realmente um mochileiro e brasileiro, com certeza.
# Uruguaina, 1996.
# Minha avó me deu. Por que perdeu a carona?
# Incompreendido. É mais difícil para um homem, sabia? Todo mundo acha que é um assalto. E quando eu começo a falar, eles sempre ficam ofendidos.
Corina e Rafael caminhavam agora lado a lado. Nenhuma árvore por perto.
# Ofensas?
# O cara era um materialista e estava destinado a morrer de hemorróidas.
Corina sorriu pela primeira vez.
# Eu tenho hemorróidas.
# Morte dura. Qual seu destino?
# Próxima cidade e você?
# Próximo estado.
# Você acredita em destino, Corina?
# Não, só em santos.
Corina odiava falar enquanto andava, cansava mais. O que tinha encontrado pelo caminho era um típico iniciante brasileiro, disposto a seduzi-la. “Merde”. Era sempre mais bonito xingar em francês.
# Primeira vez?
# Não.
# Experiente então?
# Celibatária.
# Sério?
# Sim, só para brasileiros.
# Hum... Se você quiser, posso ir pra outro lado.
# Sim, quero.
# Você é sempre bem humorada?
# Você é sempre bem falante?
Rafael sorriu. Ia atravessar para o outro lado, mas voltou.
# Ei, Corina!
Corina virou-se. Ele jogou uma garrafa típica de corredor para ela. Cheia de água.
# Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.
Ela agarrou. Sorriu.
# Boa viagem, Rafael.
“Merde”, pensou Corina. 10 pulos a cada 2m.
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