‘A vida é uma escolha estranhamente insensata’, pensava Andréia ao ver casas de pau pela janela do trem. O trem havia mudado durante os últimos anos. Telas de cristal líquido passando propagandas de Omo, assentos acolchoados, tapete verde. Ar-condicionado. Pessoas fedendo a cigarro e pinga às 7 da manhã. A vida interior continuava a mesma, apesar do invólucro pós-moderno. Homens de pau-duro e obscenos. Meninas estudando com fichários pendurados. Homens de terno dormindo sentados. Velhas com 5 filhos implorando por um lugar apertado.
‘Por que me sinto triste se a vida corre desesperadamente do lado de fora?’
‘Por que as crianças de pés sujos sorriam e me acenam?’
Não há nobreza no mundo que explique o indivíduo feliz. Em meio a restos de comida, roupas penduradas no varal, calcinhas expostas, fraldas descartáveis abertas, as crianças sorriam e acenavam. O trem era belo. Era erroneamente de todos. Andréia só estava ali de passagem, vendo as casas grudadas umas às outras e as crianças que sorriam e acenavam.
Seria ela um espetáculo? O exemplo de pessoa sucedida? A mulher que viajava duas horas para chegar ao trabalho? Que disputava o melhor café às 10 da manhã? Aquela que voltava adormecida entre os trabalhadores braçais e as domésticas que gargalhavam ao som de algum cântico evangélico? As crianças apenas sorriam e acenavam. O trem não variava mais. As paradas eram cópias do metrô. Mas as pessoas fediam e as crianças ainda sorriam.
De costas para o vagão, ela soltou. Portas abertas, emperradas por algum rapaz que precisava de ar puro.
‘Porque se sujar faz bem’ iluminava o vagão.
‘É, vou mudar meu sabão para Omo.’, pensou Andréia.