quarta-feira, agosto 16, 2006
As axilas
A dor era insuportavelmente quente. Úmida, vermelha e espásmica.
Assim, a paraparésia espástica tropical, infecção viral, lentamente progressiva, da espinhal medula que causa debilidade nas pernas, derrubou Branco em um balançar de folhas. A sensibilidade de seu pé foi perdida parcialmente. Enfraquecimento e rigidez muscular em ambas as pernas.
Branco se arrastou pelas folhas quentes da amendoeira, tentando a todo custo chegar perto do carro azul. Chorou, ainda tinha um pouco de leite na boca.
As pequenas mãos rosadas e os dedos fofos batiam no chão. Era o verão de janeiro e todas as pessoas estavam distantes para ver a chegada de Tio Joaquim, aquele mesmo tio que o presenteara mês anterior com um cavalo marinho do Japão. Tio Joaquim era o orgulho da família Fonseca, o jogador de quebra-cabeças, o galanteador de outrora, o fazedor de suspiros brancos perfeitos. Branco queria mostrar seu carro azul que estava perto da árvore. A casa de Vó Maíra era grande, espaçosa e naturalmente cheia de familiares. Pessoas que cozinhavam e comiam com os olhos, pessoas preocupadas com a novela das duas, com o romance do vizinho casado, com a marca do óleo da sogra, com quantos presentes ganhariam no Natal.
Branco tinha somente os pensamentos da dor. A dor era controlada pelos impulsos de seu cérebro, jogadas no corpo porque algo estava errado. Ele ouvia ao longe as risadas dos padrinhos, sentia a fragrância do charuto do pai, o perfume azedo da irmã e ao longe, o cheiro do suor da axila de sua mãe. Branco tinha fixação por suor. Adorava o cheiro exótico e perturbador do cecê alheio. O link entre o sagrado e o profano. A marca instintiva da mortalidade humana.
As pernas pesavam. Branco sentia as abelhas acima de sua cabeça. Chorou, queria chegar perto do carro azul. Queria o cheiro do suvaco.
O limiar fisiológico de Branco tinha uma duração limitada. A dor era um feito necessário. Provava que a beleza do mundo era finita e que os impulsos dados à vida eram perfeitas sintonias de células. Se algo desse errado e a falha viesse à tona, o corpo respondia.
A dor é um estado de consciência com um tom afetivo de desagrado. Um tom excepcionalmente agitador.
Branco se debatia entre as folhas de amendoeira. Queria sentir as axilas do mundo. Queria que o corpo obedecesse. Queria sentir seu pé de novo.
Sua mãe o achou depois do segundo intervalo da Sessão da Tarde. Abelhas ainda estavam acima de sua cabeça. Em seus olhos, os resquícios da dor mortal. O bebê de 1 ano e meio foi enterrado perto da capela de São João.
Link esse texto //
5 Comentários
|
|