segunda-feira, agosto 28, 2006

A casa da árvore

Os pés foram sujos de lama. As unhas logo foram contaminadas por vermes invisíveis que só atingiam indivíduos ricos. Gil estava protegido, porém. O sítio de seu avô era um reservatório de plantas realizando fotossíntese. O ar era mais leve e úmido. Os seres respeitavam a grama. Não atingiam a superfície urbana.

Era uma tarde de primavera. Gil tinha acabado de comer bolo de fubá com chocolate quente. As folhas caíam e atingiam o chão de hora em hora. A flor abria seu néctar para uma exploração selvagem. Gil decidiu explorar o terreno até então conhecido. Colocou no bolso um sinalizador, uma torrada e um Lolo, caso sentisse fome. Chocolate repõe energia, era o que sempre sua avó dizia.

Pegou a estrada que partia do portão da casa de seu avô. Era um dia claro, mas quando ele ultrapassou a cerca de madeira, uma nuvem cinza pairou.

Caminhou quilômetros cantando antigas canções de escoteiros, transmitidas oralmente pelo seu pai. Quando ia repetir pela décima quinta vez a primeira música, intrigou-se. No caminho antigo que sempre conhecia havia somente uma estrada de flores. Piscou os olhos novamente. Sim. Ao invés do caminho conhecido, uma bifurcação. Um era o caminho das margaridas, o outro de rosas brancas. Como rosas brancas lembravam enterros, escolheu as margaridas.

A cada passo dado, um barulho diferente. Até pensou em voltar, mas o caminho das rosas era mais assustador. Seguiu. Ouviu passos pela estrada, mas cada vez que olhava para trás só encontrava suas pegadas. Ouviu Ágoras, o animal da família, fazer barulho ao longe.

Bem, não estou longe então. Qualquer coisa eu grito.

Mas não gritou. À sua frente, um menino de pés virados o observava. Gil empalideceu. Os olhos dele eram negros como noite sem lua. Virou para trás pronto para correr, mas o menino estava à sua frente, assim que virou as costas.

# Você não precisa de sinalizador, disse o menino de pés virados.

Ele futucou seus bolsos. Jogou fora seu objeto preferido, esfarelou a torrada, mas guardou o Lolo em sua mão empoeirada. Suas unhas eram grandes. Arranhou Gil quando segurou se braço.

# É por ali.

Seria ele um Curupira? Um deficiente? Um estrangeiro?

O menino de pés virados conduziu Gil para o fim do caminho, que dava para um pé de roseiras com espinhos.

Odeio rosas.

Como se os espinhos não o atingissem, o menino dos pés virados segurou os ramos da roseira, até que Gil passou. Quando Gil virou-se, só a roseira estava ali.

Mas no meio do campo aberto, onde nuvens se formavam carregadas no céu, ele viu a casa da árvore.

Era feita de ramos, de galhos, de madeira e de panos. A porta estava encostada. Gil olhou para roseira e para a casa. Sinal de Ágoras ao longe. Encheu o peito de coragem e gritou:

# Olá! Alguém aí?

Nem o vento respondeu.

Vou chamar mais uma vez, só isso.

# Olá! Alguém aí?

Ouviu um ruído em suas costas. Um cheiro de perigo no ar. Um animal gigantesco o observava, perplexo. Sua boca pingava água, era algo asqueroso. O animal soltara um ruído que Gil não conseguia identificar. Apavorado e tremendo, Gil correu e subiu as enormes escadas, eufórico. Chegou no topo da casa, suando e assustado. Não viu quando o encapuzaram, mas sentiu quando o jogaram no chão de madeira.

# Uau! Olhem isso!

# Ele é menino ou menina?

Gil pode ver a luz e identificou os seres quando o capuz fora retirado. O animal asqueroso estava lá, latindo.

# Será que ele morde, João?

# Claro que não.

Gil se encolheu. Sabia das histórias desses seres, principalmente dos pequenos que torturaram gerações de seus familiares.

# Ei, seu gnomo. Até que enfim o pegamos, hein?

Gil não entendeu as palavras. Seus cachos ruivos caíram sob sua face. Estava perdendo as forças. Precisava de seu Lolo.

# Será que ele vai querer morar aqui, João?

# Claro. Quem é que não gosta de uma casa na árvore? Vamos colocá-lo dentro desse pote grande.

Não. Os potes de vidro não. Pensou em sua mãe. Em seu Ágoras. Implorou para o ser urbano maior o libertar, mas eles eram cruéis. Principalmente os pequenos. Sempre os prendendo por gerações.

Preciso avisar a todos. Não confiar em...

Os pensamentos de Gil foram presos no pote de vidro. Seus cachos foram definhando. Se não comesse seu Lolo...

Os seres urbanos deixaram Gil sozinho. A última imagem que viu foi a porta fechando.

A casa da árvore testemunhou quando seus cachos despencaram de sua cabeça. Chovia e as crianças voltaram para casa a fim de devorarem o bolo de cenoura com cobertura de chocolate. O menino de pés virados comeu o Lolo antes mesmo de chegar na cozinha.



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