terça-feira, agosto 08, 2006
O palhaço de Donald's
Melborne Francisco de Souza nasceu em 1985 e trabalha no maior abatedouro do mundo. Funcionário exemplar, foi promovido da casquinha de sorvete para supervisor de fritura.
# Mel, olha a chapa, cara!
A chapa sempre esquentava na mesma temperatura. Melborne havia se perdido em seus pensamentos. Isso sempre acontecia por volta do pico da audiência. Localizada no centro, com promoções televisionadas de 16 em 16 minutos pelo Cartoon NetWork, a loja era point dos adultos-pais, executivos magros, mas com tendências obesas que sempre aumentavam as vendas por volta do começo do mês.
# Quero um lanche feliz, com um mega ultra-submarino robô que dá golpes de Taebo e tem uma pulseira verde-água.
# Só temos laranja, senhor.
# Ai, não. E agora? Esse ele já tem!
Mel tinha um amigo de infância que o havia indicado à vaga. Vicente fazia sobrancelha. Mel nunca perguntara nada sobre a intimidade do amigo, mas ele usava lápis de olho diariamente.
Os dois fumavam no intervalo do lanche, atrás da porta dos fundos. Como os pacotes de cigarro inflacionaram nos últimos tempos, eles rachavam semanalmente o luxo do Carlton.
# Hoje vai ser o dia, cara. Muitos pais, muitas crianças.
# Quero estar longe na hora do pico, Vi.
Mel tinha um chefe, Douglas, que adorava puxar saco da unidade. Promovia, mensalmente, por conta própria, um evento que enlouquecia pais e funcionários e animava os filhos: ele guardava os brinquedos mais disputados para o mês seguinte. O brinquedo que sempre acabava primeiro em todas as lojas era sorteado por ele, vestido de palhaço e admirado por crianças de 0 a 10 anos. Todas com seus lanches felizes e seus estômagos apodrecidos de carne mal passada e litros de refrigerante quente.
Douglas, com cara esverdeada, abriu a porta dos fundos. Mel e Vicente fumavam.
# Ei, chefe, que cara é essa? retrucou Mel.
# Algo me fez mal.
# Muita gordura, disse Vicente. O senhor tem que parar de comer o número dois.
Douglas puxou o esfregão e vomitou no tanque.
# Vixe, chefe.
# Azedou tudo! Tu limpa, Mel. Credo.
# Não dá, gente. Hoje não dá.
# Chefe, vai pra casa. Cancela isso.
# Ficou doido? Crianças lá fora esperam o palhaço! O brinquedo número 1! Impossível!
# O que o senhor vai fazer? Vomitar nas criancinhas?
Douglas, que suava frio, lavou o rosto.
# Mel, só você pode me substituir.
O palhaço, no Reino Unido, como parte de seu código de ética, tem sua própria cara de palhaço pintada na casca de um ovo. Nenhum ovo pode ser parecido com o outro.
O palhaço de Donald’s, Melborne Francisco, com a máscara de Douglas, o eterno palhaço sorridente, tinha infantofobia. Era alérgico à multidões infantis. Ele foi recepcionado por todas elas, em um grito uníssono:
# PA-LHA-ÇO! PA-LHA-ÇO!
Mel foi empurrado pelo chefe. Um alvoroço infantil o atingiu. Ele ensurdeceu por segundos eternos. Pequenos e grandes puxavam sua roupa. Mulatos e brancos riam com fritas nas bocas.
“Vinde a mim as criancinhas”.
Mel viu o teto girar.
“Que engraçado. O mundo em câmera lenta”, pensou.
O cheiro de gordura e o borbulhar do liquidificador fazendo milk shake de morango foram os últimos barulhos que ele recordara. Ele só lembra de ouvir um:
# Aí vai!
O brinquedo número 1 escorregou de sua mão para o céu. O agrupamento de mãos pueris e cheias de gordura tentou pegá-lo, derrubando o palhaço, pisando em seu sorriso e em seu chapéu, comprimindo seu nariz vermelho e quebrando seu ovo.
O vencedor foi o pai mais alto que tinha o filho mais baixo. Melborne passou 22 dias no hospital. Foi indenizado. 360 reais. Era um palhaço barato.
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