sexta-feira, agosto 04, 2006
Os baldes
Era mês de agosto e o planeta Marte estava mais brilhante no céu noturno. No especial dia 27, Eloá retirou da caixa de papelão sua luneta, herança bizantina de seu tataravô. A olho nu, tão grande quanto uma lua cheia, Marte, mais próxima da Terra, perdia-se na íris da menina.
Meia-noite. A hora encantada de seu aniversário. Era a única menina da sala que tinha nascido nesse horário. Os mitos a fortaleciam porque se sentia segura na hora indevida.
Pisou firmemente nos degraus que saiam de sua casa e foi para o quintal. Segurava firmemente seu legado familiar. Atravessou um varal de roupas lavadas que cheiravam a sabão de coco e pedra anil. Baldes laranjas espalhados na parte desse pequeno terreno domiciliar.
23:46 A atmosfera de Marte é bem diferente da terráquea. É o quarto planeta a contar do Sol.
Eloá retirou a poeira da luneta com o sopro vindo de seu pulmão.
“Coisas antigas não vão embora com facilidade”, pensou. Passou o dedo fortemente sobre a lente. O céu clareou.
23:47 A face de Marte, monte nas planícies do norte erodido pelo vento, permeia a mente das pessoas que buscam vida inteligente.
“O deus da Guerra. Nirgal. A estrela da Morte”. Eloá lembrou das aulas de geografia com professor Altair, negro, partidário de frases de efeito e de jogos entre alunos. Ela fez com que sua turma ganhasse a gincana no último ano do colégio devido a seus dotes astronômicos. A lei das estrelas a fizera ganhar popularidade entre os garotos.
23:48 As fábricas que na Terra produzem gases nocivos ao planeta, em Marte teriam um efeito de terraformação caso grandes fábricas fossem arquitetadas. Esse processo teórico modificaria o planeta para melhores condições humanas de habitação.
Eloá piscava o olho esporadicamente. Queria sentir o planeta que a regia. Mutucas eram figuras permanentes naquela região. Eloá bateu em sua perna, tentando afugentar alguns. Os mosquitos persistiam.
23:49 Marte. Indômito. O astrônomo grego Hiparco verificou que Marte nem sempre se movimentava de oeste para este. Ocasionalmente, o planeta invertia o seu caminho no céu para a direção contrária; para depois recuar a deslocar-se normalmente.
Eloá congelou seu movimento. Um frio na espinha e um nó na garganta. Entretanto, não podia tirar os olhos do céu. Queria gritar, mas não conseguiu. Deu passos, recuando. Mutucas continuavam picando suas pernas, abaixo do vestido. A menina tremeu.
“Meu Deus. Preciso mostrar isso para alguém”.
00:00 Afogamento é a asfixia gerada por aspiração de líquido de qualquer natureza que venha a inundar o aparelho respiratório. Haverá suspensão da troca ideal de oxigênio e gás carbônico pelo organismo.
Nitidamente Marte pairava no céu da Terra. Mutucas picavam. Eloá tentou desviar, ainda olhando para o céu.
Os chineses, coreanos e japoneses chamam-lhe "Estrela de Fogo", baseando-se nos cinco elementos da filosofia tradicional oriental. O planeta esculpido na imensidão celestial emanava força de Ares.
A menina, dando passos para trás, esbarrou nos baldes laranjas. Mutucas picavam ferozmente. Para não cair, segurou no varal, que despencou violentamente. Seu rosto foi diretamente para dentro da metade de um balde com água. Queria se levantar, mas não conseguia. Suas mãos estavam presas pelas roupas. Mutucas picavam.
Debateu-se por cinco minutos. Segurava fielmente sua luneta. Hoje sabemos que poderá ter existido água abundante em Marte e que formas de vida primitiva poderão, de fato, ter surgido.
00:30 Duas luas no céu límpido de agosto. Uma luneta no chão. Baldes laranjas espalhados. Mutucas. Não perca. A próxima vez que Marte vai aparecer assim será em 2287.
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