quarta-feira, setembro 20, 2006

Desforçar o poder

Ela limpou a poeira da boca. Cuspiu saliva com pedaços de mosquito triturado. Já era tempo de verão. E no verão, mosquitos se suicidam dentro da boca de humanos. A probabilidade de um inseto cruzar o caminho de um humano é remota, mas toda pessoa já cuspira esse elemento vivo ainda uma vez na vida.

Aconteceu quando bocejou. Bocejou não para aspirar a beleza do momento veraneio, mas porque o sono era algo que importunava eventualmente.

Narjara trazia o fardo nas costas. Seu pai disse ao vê-la depois de nascer Você acredita no que inventa. Porque inventar era algo poderoso. E desde que o humano se conscientizou, apodrecia querendo isso. Para logo depois enjoar e pedir paz. Contraditório, sim. Mas elementar.

A invenção nasce com o desejo de ter o domínio. Controlar para não ser vítima do acaso. O inventor humano é um assassino de intenções livres, um captador de recursos que retira de multivisões uma verdade contida.

Era a função de Narjara. Acreditar em suas invenções que logo virariam verdades. Para alcançar o desejo era necessário inventar. Ela trazia no ventre das idéias o anátema do escritor. O querer pelas multidões, o encontrar-se na solidão. A manipulação das palavras era mais rápida do que a digitação escorregadia que seu cérebro processava. Ela precisava atingir multidões, cercá-las com suas palavras para que o maior número possível de seres pudesse acreditar em sua invenção.

Escreveu um email. Inventou os seis graus de separação. Espalhou-se pelas caixas de correio. Infiltrou-se na leitura diária de mensagens instantâneas. Pipocou em sites, pop-ups e flicks. Materializou-se, tornou-se o vício das mentes do século XXI. Encantou crianças que brigavam com os pais porque ainda não a possuíam. Atingiu a massa. Duplicou-se em santinhos. A luz tênue de seu discurso era o lema da globalização. Do pixel regurgitado nasceu o blog. E com ele, sua peregrinação.

Ser escritor é definitivamente uma maldição, pensou Lino ao tatear o escuro. Desde que aceitara reproduzir a história de Narjara o fardo o atingira. Acordou naquela manhã com os lençóis encharcados de palavras doces. Papéis picados jogados dentro de uma caixa de sapato. Não foi por mal. Prometo que isso não vai acontecer mais uma vez.

Era a história dela que o penetrava. Ele sabia que o contador de histórias inventa para que a atmosfera tediosa não crucifixe os pacifistas urbanos. Paz dura no máximo 45 dias. E foi em 45 dias que Narjara contou sua peregrinação. Em 45 horas, ela se transformou em um vírus em sua mente.

Agora Lino estava preso em um cubículo negro, com rabos de ratazana encostando em sua canela. Tudo porque aceitara reproduzir em palavras o que a menina de lentes de contato azul implorara. Em troca, ganhou uma trepada de quatro e a história mais espalhafatosa que já ouvira.


Narjara foi levada em 45 minutos. Palavras foram colocadas na boca de Lino. Afundou com as sílabas da pragmática. Teve a garganta escanhoada. Tentou escapar, mas inseriram um surrão de verbos pela orelha. Tonteou-se. No cubículo negro, viu-se enforcando a ratazana. Desforçar. Não conseguia mais. Os seis graus de separação fizeram-no reconhecer o bilhete. Narjara sorrira. Lino era só o leitor tateando no escuro. Ela não, tinha o poder.



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