segunda-feira, setembro 04, 2006
O banheiro
Abriu a porta do espelho do banheiro. Estava atrasado. Todavia, a fixação de Caio por seus dentes consumia seu tempo matinal. Havia usado aparelho por 1 ano para endireitar um canino posterior. Religiosamente escovava os dentes por 10 minutos. Passava fio dental extra fino 20 vezes. Listerine por mais de 5 minutos, até que suas bochechas estivessem dormentes. Teria úlcera nervosa daqui a dois anos, com certeza.
O banheiro era seu lugar sagrado. Sua pia era estrategicamente um santuário para sua saúde oral. Mastigava os alimentos 30 vezes. Sua boca era uma centrífuga. Seus colegas de trabalho da loja de seguros odiavam almoçar com ele. Ele sempre dizia que dentes bem cuidados compõem o sorriso, servindo de suporte aos músculos faciais, contribuindo para a expressão facial que o fazia vender mais na loja. Fluorizava seus dentes em casa. Tinha um kit semanal. Nunca teve placa bacteriana até aquele dia.
Algo estava irregular no cômodo. Observou o banheiro durante sua escovação. Os minutos passavam atrasando mais ainda sua ida a seu emprego. O desorizador líquido Harpic exalava seu perfume menta. Ainda com a escova na boca jogou Bom Ar no recinto. Algo ainda está estranho.
Ao mesmo tempo em que precisava ir, sabia que algo ameaçava sua segurança ortodôntica. Vasculhou o banheiro de cabo a rabo. Abriu as gavetas, olhou todas as toalhas. O papel Neve estava lá. A pasta de dente começava a ressecar seus lábios. Um pedaço havia petrificado na bochecha.
Cuspiu. Foi aí que sua visão dentífrica percebeu o barulho. Não pode ser. Impossível.
Caio precisava terminar sua escovação, mas sua vida dependia daquilo. Continuou com a escova dentro da boca. Olhou-se no espelho. Uma gota de suor escorria pelo nariz. Sua sensibilidade dentária o fez levar a mão à boca. Meu Deus, não pode ser. Por favor, não.
Um barulho vinha da descarga. Como cigarras em pleno verão, o barulho alcançava um teor auditivo que só Caio percebia. Ele havia lido na www.dentes.info que o dente humano depois de totalmente erupcionado não se recupera do desgaste natural, ao contrário dos dentes de alguns animais, como os roedores, que estão em contínuo crescimento. Tremeu. Era seu trabalho de uma vida toda.
Mas se ele não chegasse perto poderia contaminar seu santuário higiênico. Um cheiro de mau hálito pairou no ar. Ele borrificou o ambiente novamente, mas o hálito continuava em suas narinas. Deu passos lentos em direção a latrina. Estremeceu. Um frio subiu à sua espinha dorsal. Elas estavam nadando felizes, subindo e descendo na água que antes havia sido purificada por Caio. A película de bactérias orais se multiplicava. Caio se esquivou, mas era tarde. A porta do banheiro não abriu. O basculante fechou. As bactérias da placa tomaram proporções alarmantes. Não rija.
A cárie dentária e as doenças das gengivas o atingiram em cheio. Desmaiou. Nunca havia sentido dor naquela região. Sua saliva contaminava os dentes. A escova caiu latrina abaixo. Tentou agarrá-la, mas era tarde. Os cisos nasceram. Ele tinha 32 dentes.
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