quarta-feira, setembro 06, 2006

O dia mais frio do mundo

Era o dia mais frio do mundo. Ao invés de bafos de fumaça, bocas congeladas. As pessoas daquela região não estavam acostumadas com a geada. Não tinham aquecedores. Bruninho se encolhia debaixo do cobertor de Power Rangers. Júlio, seu pai, havia cortado a mangueira para aquecer a casa. Estradas interditadas. Neve em um país tropical. As televisões espirituais anunciavam o fim do mundo. O Senado, caos econômico. Para a população, era mais uma primavera fria.

Júlio havia colocado mais um tronco na fogueira no meio da sala quando ouviu o grito do filho.

# Pai! Pai!

Júlio havia sido policial, mas há dois meses estava preso em sua rua. Acostumado a cuidar dos outros, a aflição de seu filho o incomodava. As pessoas cuidavam umas das outras. As árvores estavam acabando ou morrendo secas. No quarto, todos os brinquedos de madeira já haviam sido queimados. Bruninho segurava um velho Pooh.

# Ela voltou, pai.

# Quem?

# A moça da água.

# Só eu e você aqui, Bruno.

Júlio percebeu que as mãos de seu filho congelavam. Usou todos os tecidos encontrados na casa, mas nada aquecia Bruninho em certa hora da noite. O menino tremia, batendo queixo.

# Vou levar mais um brinquedo, Bruno.

Ia arrancar o velho Pooh da mão do garoto, mas ele uivou. Ainda batendo queixo:

# 20 verões, três mil primaveras frias. A moça da água disse. Ela vai me levar, pai. Você não vai conseguir me aquecer.

Júlio estremeceu. Do lado de fora da janela, um vulto passou esbranquecido.

# Mas o que...

Bruninho agarrou a mão do pai.

# O Pooh precisa de mel.

Júlio estava cansado, com certeza. Obedeceu a criança. Foi até a cozinha, pegou um pote e melou a boca do boneco. Quando voltou, seu filho estava debaixo da cama.

# Eu não quero ir, pai.

Seu pai o colocou no colo.

# Você não vai a lugar nenhum.

# Não abra a porta. Se ela entrar, terei que ir.

Júlio pegou o menino nos braços. Se não fosse lá fora em uma hora, o fogo terminaria. Duas batidas fortes na porta. O menino estremeceu mais ainda. O pai o ninou nos braços mais perto do fogo.

# Não abra a porta. Se ela entrar, terei que ir.

As batidas incessantes duraram mais de meia-hora. Depois o intervalo entre elas foi maior. A cada barulho na porta de madeira, um gemido do menino. O fogo acabava.

O pai desesperado cantou canções de ninar. Mas as batidas continuaram até o fim do fogo.



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