quarta-feira, outubro 18, 2006

Carrapichos

Maya acordou com vontade de comer uva-passa. Virou-se de um lado para o outro para que a vontade passasse. Vontade para ser vontade tem que se manter distante. Mas o desejo latejava como a dor de cabeça que não é cessada com Dramine. Era um dia chuvoso, propício para a degustação da fruta. Maya já tinha até pensado nas próximas ações. Ela e um pote de uvas-passas, devoradas e mastigadas 37 vezes. Depois a língua roxa, seu dedo na campainha (sua mãe ainda usava esse nome: “Sua campainha está inflamada, Maya”) e um remédio para que uma nova vontade não chegasse. Pelo menos até o novo dia despontar e ela se encaixar perfeitamente na saia balonete.

Para que retirar uma costela se ela tinha o órgão mais natural do mundo? A unha de seu indicador quebrava facilmente. Sinal de enfraquecimento.

Despiu-se. Tomou banho. Vestiu o moletom. Pegou o elevador. Cumprimentou o porteiro. Balançou as chaves e atravessou a Voluntários da Pátria. O símbolo do HortiFruti sorria. Foi aplaudida por melancias, rodopiada por melões, assediada por bananas, mas a uva-passa continuava acanhada ao lado da maçã. Fruta da tentação.

Um passo e Maya sufoca as frutinhas dentro de um saco plástico. 2kg.

Quando abriu a porta do apartamento, o silêncio a espreitava. Quando rodou a chave na fechadura, trancando-se na imensidão silenciosa, ela ouviu o alvoroço. Vinha das paredes. Elas arranhavam a nova pintura.

Maya pegou o primeiro objeto que viu. Sua caneta Compactor preta agrediu a plasticidade do saco. Dentro, uvas-passas se amontoavam umas nas outras. O alvoroço continuava. Elas arranhavam a nova pintura, loucas pela aproximação.

A garota sentou-se rapidamente no sofá seminovo e agarrou as frutas. O silêncio amarelou os dentes. No movimento da mão à boca, a saliva uniu-se ao desejo. O gosto deu choque no maxilar. As uvas doces e secas. Cultivadas em todos os 6 continentes. Fonte de energia e sais minerais.

Maya e suas 37 vezes. Delícias na cavidade bucal. Durou 5 minutos a grandiosidade da sensação. Em 5 segundos o arranhar na nova pintura retornou. Sua mão estremeceu. O saco estava vazio.

A língua roxa. As gorduras localizadas que arranhavam a nova pintura invadiram seu culote. Grudaram na pele como carrapichos em roupas. Ela levou o indicador à boca.

10 minutos depois, com sua caneta Compactor, desenhou na pele do braço um dominó.

A vida é um jogo de melhor de 3.



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