terça-feira, outubro 24, 2006

Chocolícia

Lygia abriu o pacote de Chocolícia. Usou a fita vermelha, mas ela quebrou antes de chegar ao fim, deixando metade do biscoito exposto. Ela odiava quando isso acontecia, era sinal de que o primeiro biscoito ia quebrar. Ela, mais do que ninguém, prezava o hábito de comer o primeiro para que ninguém roubasse seu namorado. A usabilidade às vezes trai o usuário. Estava ela saboreando o irresistível chocolate quando uma lúgubre buzina agrediu sua degustação.

A idéia de levantar-se e atender o visitante a entediava profundamente.

Duas batidas fortes na porta, seguidas de 5 toques na campainha.

Lygia tirou suas pantufas de sapo dos pés. Ao abrir a porta, levou um susto com o vulto que invadiu sua residência.

Paula, sua prima mineira, tinha Deltacid na mão esquerda.

# Eu tenho bichos na cabeça.

# Piolhos?

# Pior, bichos asquerosos. Eu encontrei centenas deles em minha cama. Estão em mim.

Lygia lembrou-se de seu nojo para com insetos. Ou qualquer coisa que invadisse seu corpo. Mas como dizia Graham Greene, dever é uma doença que se pega com a idade.

Paula sentou-se nervosa no puff laranja.

# Eu sinto, parecem cupins mutantes, Lygia. Eles não vão embora.

# Sintoma psicossomático, prima – remexendo a cabeleira – Não vejo nada. Só caspas gigantes.

# Vão tirar todo o meu sangue. Eu sei.

# Pelo cabelo, Paula? Duvido. Insetos vampiros?

# Estavam na sobrancelha.

# Você...

Sim, ela tinha jogado o líquido nos pêlos acima dos olhos. Suas pálpebras estavam inchadas. Paula se coçava veementemente. Quis jogar Deltacid no corpo, mas foi impedida por Lygia.

# Eu não agüento mais, Lygia!

# Paula, não há nada! Eu chequei!

# Você é míope?

# Não.

# Então, só os míopes enxergam melhor de perto.

A prima mineira andava de um lado para o outro apreensiva. Pruridos.

# Senta aí. Vou pegar o tel do dermatologista. Relaxa, deita no sofá.

Paula obedeceu. Ao encostar a cabeça esbarrou no pacote de biscoitos. Três se esparramaram pelo tapete felpudo. A mineira olhou para os dois lados, sacudiu a poeira invisível e os saboreou. Quando Lygia voltou, ela estava mastigando o último dos três.

# Chocolate. Relaxante. Afrodisíaco.

# Consulta para hoje?

# Sim, por favor.

# Como está?

# Engraçado, melhorou.

Paula observou a prima discar e agendar a consulta. Deliciou-se com mais um recheado, no fundo do pacote. Lygia desligou o fone. Paula abraçou a prima.

# Você é um amor.

Foi-se.

Lygia aconchegou-se em seu sofá. Foi espetada pelo biscoito. Havia um último.

Último sempre dá azar, pensou.

Mas era Chocolícia, então o devorou. De dentro do pacote, asquerosos bichos invadiram seu bulbo capilar. A coceira era infinda, pinicando cada película vital, futucando como cosquinhas irritantes, flutuantes entre os fios.

Ela roçava as têmporas com a mão. Também comprou Deltacid.



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