segunda-feira, outubro 23, 2006

Papoulas de Bagata

Lara conhecia bem aquele bairro de sua cidade. Havia passado várias vezes em frente aos condomínios e prédios altos que mexiam com sua cabeça. Mas a única coisa que pensava estava acima de toda a altura e de toda a compreensão humana. Ela era feita de sensações.

Desde pequena, ela sabia que não poderia dizer não para tudo que o mundo lhe oferecia. Dirigindo seu velho carro azul, ela abaixara o vidro do veículo. O vento sulista estava quente.

O que se faz em uma estrada solitária é colocar os pensamentos para viajar. Então ela parou o carro. Bem ao lado do começo do morro. Subiu. A melhor vista da cidade. O melhor cheiro. A melhor memória.

Evitaria os clichês? Evitaria o minuto que se passa entre os olhos brilhantes? Veria o lado bom humano? Teria uma sensação de paz que a faria desistir da sensação maior? Colheria papoulas que se transformam em rainhas que cagam? Pensaria em Bagata?

A única certeza que tinha era que seu olfato administrava o ponto central. A memória poderia ser falha, poderia ser seletiva, poderia ser inventada, mas a sensação que o cheiro lhe trazia era verdadeira. O único órgão certo da essência humana. O óleo que alimentava as peles secas dos esquecidos. O humano poderia não lembrar, mas a sensação estaria lá, impregnada como um pedaço de alma descascada.

Pobre Aninha. Pobre Clara. Pobre Beto.

Mas haveria perspectiva para a escola no ano seguinte. Haveria gelo e nevada. Haveria canções de Natal, pessoas voltando para casa depois de um verão conturbado. Todo o mundo teria um final feliz porque a última pessoa que morreria seria o esperançoso. Haveria os sinos. Os filtros do sonho. As panelas de barro. Os compassos. As gaitas, o hálito em uma tarde de frio. Os livros. Os filósofos de esquina. Os homens que dormem de bruços.

Lara poderia ter chorado. Sentido falta de todos os fatores que trariam sonhos concretos. Mas ela não se pertencia. Era filha do dono do mundo e teria um rio só para ela. Não queria ver as crianças aprendendo matemática, nem o gari recolhendo lixo tarde da noite. Não queria mais ver as pessoas jogando papéis no chão, andando apressadas com guarda-chuvas coloridos.

Duas faces no horizonte, um beijo jogado para o ar, uma pintura dadaísta. A única coisa persistente era o cheiro, cheiro que a impregnava e a agarrava como um fugitivo em desespero coletivo. Um ser claustrofóbico. Demônios que invadiam o coração para pedir uma sangria. Um sacrifício.

Ninguém sabe.

Era primavera. Ela achava que ouvia sussurros. Era bom. Era uma canção de um amigo português. Seria um novo cheiro? Seria uma infinidade de cores e sensações desfocadas? Lara considerava improvável, porém possível. O rio a teria atravessado de qualquer forma se ela não tivesse se jogado.

Como eu disse, ninguém saberia. Era a sensação maior. O finito momento onde se descobria porque todo humano tinha medo de morrer. O finito momento secular que transformaria os mistérios e segredos em pequenas palhas secas, esvoaçadas entre cinzas. O finito momento para encontrar o toque pulsante da vida.

As papoulas de Bagata, entretanto, entenderiam.



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