quinta-feira, novembro 23, 2006

O garoto que tinha caspas

Eu era um pequeno estranho abandonado. Devo dizer, filho do meio.

O sofrimento do filho do meio: tudo sempre está bom para ele. Não somos os preferidos e sim os mais compreensivos. Aqueles que agradam os pais por sempre estarem no meio. Os apaziguadores, os solteirões. A realidade dos filhos do meio é penosa. Pensamos na carreira porque nossos pais querem isso. Namoramos muito, mas não conseguimos um relacionamento estável. Os filhos do meio fazem mais terapia porque demoram mais tempo para se rebelarem.

Eu comecei a rebelião depois que meu irmão mais velho estava no doutorado e minha irmã mais nova prestes a casar.

Cá estava bebendo Ice naquela noite. Quando bebo Ice imagino uma menina de polainas vermelhas ou brancas, depende da ocasião. Sonho que ela é interpretada pela Angelina Jolie ou alguma atriz polêmica. Não, Angelina, não. Agora ela é mãe, não quer mais posar nua. Geralmente é Angelina, mas vou ter que pensar em outras opções. Bem, ela sempre tira a polaina e canta Madonna. Ao invés de prestar atenção à boca despudorada, meus olhos se fixam na batata saliente. Quero observar a boca impetuosa, mas meus olhos não desgrudam da musculatura perfeita da batata. Fico assim até que a música termine e Angelina soletre: Um menino em um caminho solitário. Não sei porque ela soletra, deve ser trauma de infância, por ter visto demais aquele filme da menina que soletrava liberdade na sessão da tarde. Não, acho que vi mais no SBT. Enfim, a cena é sempre tão real que quase esqueço que sou eu que invento.

Naquela noite minha mãe interrompeu meu devaneio antes de Angelina começar a soletrar solitário. Minha mãe subiu as escadinhas do terraço aos berros.

# Alberto! Alberto!

Às vezes esqueço que me deram esse nome porque todos me chamam de Adidas. Os apelidos são criados e nós os adotamos por sermos convenientemente incapazes de desagradar um amigo que te faz o favor de mudar seu nome de batismo. Como aquele padrinho que te dá suporte nos momentos difíceis. O apelido é um esconderijo. Apesar de que não sei porque me chamam assim, eu nem mesmo uso essa marca.

A terceira vez que minha mãe gritou Alberto, lembrei de meu avô. Um jovem senhor que morreu de ataque do coração e que disse seu próprio nome antes de falecer.

Meu pai colocou o nome no filho do meio porque minha mãe esperava uma menina e não um menino.

Quando eu me virei ao perceber o quarto Alberto gritado, ela bufou logo:

# Alberto. Você tem caspas.

Minha mãe consegue comer scargot, tirar caracóis e lesmas do jardim, mas tem nojo de couro cabeludo descamado.

# Amanhã você vai ao dermatologista.

Eu nem coçava a cabeça, como podia ter caspas?

Comecei o tratamento em duas semanas. Minha mãe evitava lavar minhas toalhas e elas começaram a apodrecer em cima da minha cama. Quanto mais shampoo anticaspas eu botava na cabeça, mas partículas brancas se desprendiam de mim.

Primeiro foram as toalhas, depois meus pentes foram esterilizados. Em dois dias minha mãe não entrava mais no meu quarto. Colocava minha comida no carpete e saía. No meio do Natal me deu um abraço com touca térmica.

Eu estava livre das explicações e ela da paparicação do meio.

Quão feliz fiquei ao derramar o vidro de shampoo e trocar às idas ao dermatologista por aulas de guitarra elétrica. Desde então, meu cabelo ensebado vem crescendo desproporcionalmente.





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