sexta-feira, novembro 03, 2006

Os grilos estropiados

Criaturinhas pinicavam seu corpo. As pessoas que têm mortes trágicas trazem na alma um ar de mistério. Durante a vida a morte não os atinge, ou se chega perto é por questão de segundos. Como se fossem de cristais.

Nívea teve uma vida bela. Talvez fosse isso que estivesse pensando quando os minutos finais rondaram seu corpo. A vida em flashes, fotos envelhecidas, fotologs eternos. Imagens de quando jogou bolinhas no cesto. O menino que chupava gelos de manhã. Seu primo dizendo que veria Chaves até ficar velhinho. Alguém correndo atrás de babuínos. Seus pés no fundo da cachoeira. Seu último beijo. A noite misteriosa do pátio.

Ela era a menininha que usava a mochila do cometa Halley. Que decifrou o mapa de Talma, seu vizinho, para achar o tesouro no fundo de seu quintal. 30% da vida de momentos felizes, 70% de brigas, dúvidas, crises existenciais e reclamações. Mas 30% ainda era um número considerável.

Quando saiu de carro em direção ao aeroporto notou que era um dia xonho, dia sem cor. Como se todo o colorido tivesse sido congelado.

Não vou levar a vida a sério, pensou. Não vou sair dela viva mesmo.

Balançou os cabelos e girou a chave da ignição. 24 horas depois seu nome estava na lista dos passageiros do avião que tinha caído em uma região de difícil acesso. Mutilações e rajadas de fogo. Ela só pensava Ainda estou viva.

E estava. Estava mais que pulsante. Estava lúcida.

Quando anoiteceu, lembrou da longa cauda vermelha do cometa Halley. Como aos 5 anos ficou tempo com a mão sobre a sobrancelha, olho brilhante, testemunha secular. A rede de cricrilos.

Nívea estava com os pés no fundo do tempo. Por mais que tentasse evitar a distensibilidade, os arroios de sangue voltavam. O vento sempre era quente no Brasil. Vinha com um calor do mar, aquecedor, renovador. Mesmo se você estivesse milhas longe do oceano, perto do coração da selva.

Havia pedras filosofais a seu redor. Juntamente com carne humana, sangria, fumaça e cheiros fortes. Imaginou-se uma Lostie. Teria sido polpada para resolver seu problema interno? Mas qual era seu problema?

Continuou olhando pro céu. Adormeceu.

# Mandei pegar estrelas para vigiar teu sonho – sua mãe dizia.

Quando acordou o sol estava forte. Os grilos estropiados tinham partido. Viu aviões percorrendo o céu.

# Aqui, sussurrou. Estou aqui.

Os aviões deram voltas o dia inteiro. Mas ela foi achada somente dia seguinte, devorada por porcos selvagens.



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