segunda-feira, novembro 13, 2006
Ukelele
Ele se escondeu nas sombras. Cantou baixinho uma canção de algum irlandês desconhecido. Assobiou.
Gostaria de pisar no sol. Ver seus pés iluminados e a sujeirinha do canto de suas unhas.
Viu ao fundo um homem tocando ukelele e se escondeu. Mesmo estando fora da imensidão do local, era difícil alguém perceber um outro grudado nas sombras. Melhor assim. Aprendeu que a ignorância era uma benção.
Às vezes ele patinava no grande salão quando todos iam embora. Colocava um chinelo de flanela para não alterar o piso. Sabia que era sábio conservar sua moradia. Às vezes ele escalava as paredes para visualizar de cima como era bonita a arquitetura gótica. Como a lua de seu país era mais brilhante. Como os uivos eram sempre repetitivos. Como a reconstrução trazia mais pessoas ao lugar.
Cada novo dia o reflexo do sol ficava mais presente. Escadas, novas vidraças, mais luz entrando porta adentro. Como era tão belo o espelho solar. Como era tão aterrorizante a chegada da claridade.
Os homens trabalhadores não perceberam quando ele, acuado, soltou um grunhido e alimentou-se ferozmente de uma veia de um senhor de meia idade. As ferramentas braçais foram largadas. O ukelele não foi mais tocado. O terror espalhou-se de boca em boca.
Era seu lugar sagrado. Precisava preservá-lo. Mesmo que isso custasse uma maldição herdada por opção. Mesmo que todos o condenassem. Mesmo que fosse conhecido como pai de aberrações. A arquitetura era mais antiga que sua própria existência. Era seu papel guardá-la da memória curta dos homens de vida curta.
Os outros teriam a morte a temer, ele teria a longevidade.
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