domingo, outubro 14, 2007
O mal do século
João Lucas acordou achando tudo indiferente. Não importava abrir os olhos e levantar da cama faltando 2 minutos para estar atrasado.
Ele tinha o dom de roubar tempo. Mas roubar tempo lhe dava atrasos. Para cada minuto roubado, ele perdia dois. O dom era irônico, como a vida era sarcástica para quem apreciava.
Acontecia sempre de manhã. Roubar tempo para pão, para pegar o metrô vazio, para olhar a saia que o vento cisma em espiar.
Roubar demais era seu problema. Uma vez na marginalidade, o vício corrompe. João Lucas até tentava levar uma vida normal, mas conforme o tempo ia encurtando, ele furtava mais. Apanhar segundos dos outros às vezes era divertido. Às vezes era assustador, como da vez que ele roubou o tempo da moça que estava prestes a falecer. A agonia de um minuto pré-morte ele disse que não queria provar nunca mais. Foi aí que ele desistiu de pular de bungee jumping.
Mas enquanto os segundos rodavam pela vida, ele permanecia parado. Deitado na cama de colchão duro. Uma vez no leito, os segundos não eram presos em seu pensamento. Ele ouviu seu laptop apitar uma mensagem recebida. Alguém queria falar. Contar um segredo obscuro. Perguntar como se conserta corações, gritar para abafar o sentimento de solidão.
João Lucas não ousou levantar. Mas outra mensagem piscou. E outra. E outra. Parecia que o mundo queria respostas e o que ele pensou de imediato era como o toque tinha sido substituído por palavras. Se houve um século de oratória, esse seria o do dom de escrever.
Palavras digitadas acalentam almas. Sejam elas verdadeiras, inverossímeis ou mentirosas. Se esse era o século de vocábulos, também era o de mentiras. E João Lucas também trabalhava com essa arte.
Ele mentiu e roubou dois minutos. Perdeu 4 porque o laptop travou e ele teve que reiniciar. Quando abriu a caixa de suas mensagens, ele respondeu à interrogação: Sim, claro que sou seu amigo.
O século de palavras sorriu, mentindo descaradamente sobre perguntas inverossímeis.
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