sexta-feira, novembro 07, 2008
A ceia
A mãe tinha morrido no Natal. Saponáceo em pó espalhado pela pia de mármore. Esbranquiçada com manchas vermelhas, na família há 3 gerações. Suas mãos enrugavam. O sulfonato de sódio passava pelos poros e escorregava diretamente sobre a superfície a ser limpa. Se a mãe estivesse viva, Lyra estaria conectada com o mundo? O óxido ferroso e o óxido férrico responderam pulsando. Seu sangue era feito de ferrugem, como qualquer outro. Plaquetas, células brancas, hemácias.
Perfume de pinho pairou pelo recinto. Inspirou, expirou. Movimentação pesada, como em dia nublado. Treinou o ouvido percebendo as leves batidinhas na porta. Porta de madeira, pesada, maciça. Retirou a mão da bucha limpatória e a secou em um pano de prato com calendário anual. Passou pela mesa de vidro e derrubou seu Livro da Sorte. Pegou o pequeno manual adivinhatório. “A CEIA: De onde pouco espera, vai chegar uma surpresa. Depois de um jantar escasso, uma farta sobremesa”. Ajeitou as sobrancelhas com a ponta dos dedos, odiava encontrar pessoas com pêlos desengonçados. Abriu a porta e saudou a figura parada, mostrando seus dentes brancos, polidos por um dentista turco exilado.
# Oi. # Oi. – respondido como reflexo.
Lyra viu que ele trouxera mais uma figura. Esguia, top model famosa se não fosse pela pele pintada de manchas arroxeadas.
# Ela vai observar? # Novata – ele respondeu.
Lyra sorriu. Seu dentista turco exilado fizera um bom trabalho, porque a top model arroxeada sorriu de volta. Ele também sorriu, soltando um arquejo sincronizado com o movimento de sua mão que expunha o frasco translúcido.
# Você já quer a sobremesa, Diogo? – Lyra perguntou. # Não morro de diabetes, com certeza. – ele respondeu.
Ela sorriu. Mostrou o sofá para a top model que sentou-se. Foi até a cozinha e tirou de cima da pia que já tinha petrificado o pó, uma agulha. Cheirava a...
# Pinho? – a top model perguntou. # Tira limos. – Lyra respondeu.
Diogo abriu o frasco. Ela furou o dedo anelar, mostrando sua ferrugem. A top model cedeu o indicador e Diogo abriu uma fresta de seu polegar. A substância sanguínea misturou-se rapidamente dentro do frasco. Borbulhou, espalhou seu cheiro pela sala. Tornou-se violeta, a cor da cura.
# Ela é uma híbrida – Diogo afirmou, olhando para Lyra.
E Lyra sorriu mais uma vez. Farejou o corpo da top model que piscava sem entender nada.
# Sobre-humanos – ela sorriu para Diogo.
Ambos pegaram o pulso roxo da top model. A veia pulsava. Sangue roxo, nobre, curador. Ela sorriu como sua mãe sorrira antes do Natal. Aí Diogo pressionou o pulso com manchas roxas e ela sugou todo o conteúdo intravenoso.
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