quarta-feira, setembro 24, 2008
Acessibilidade
Olhou atentamente as estrelas e declarou que realmente estava sozinha. Pegou um lenço de papel e escreveu: "Mapa de acessibilidade jogado ao infinito". Aí usou de seu poder humano, amassou o papel e jogou pra cima. Se ele ficasse no céu estaria errada, mas se retornasse, dali mesmo ela pegaria um foguete e ia tirar satisfação com as estrelas.
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sexta-feira, setembro 12, 2008
A primeira vez.
Ela estava suspensa no cômodo da cozinha. O sangue subia à cabeça, latejando como corte de navalha. Como se abrisse lentamente a pele e de dentro, um Mar Vermelho explodisse. Pensou nas vezes que choramingava com cortes de resmas de papel ou quando batia a cabeça na ponta da janela. A dor física chegava adormecer a pele. Os furinhos, bem os furinhos, metricamente arredondados. Onde o ar entrava e saía como sopros em canudos de plástico. Tentou esticar o braço para tocar a mesa.
Doía.
Não entendeu quando seus olhos umedeceram. Reações biológicas, pensou. Tentou abri-los mais. Compenetrou-se. Levou à mão ao pescoço.
Seu físico tremia como se levasse pequenos choques. Descargas elétricas cerebrais, pensou.
Quando achou que o pior tinha passado, as protuberâncias explodiram em sua gengiva. Finas, afiadas, delicadas, presas que lembravam a garganta de um tigre. Pensou que tinha morrido, mas o sangue insistia em mostrar a eternidade e seu gosto. Caçaria à noite e moraria no frio.
Ironicamente, enquanto seu corpo se acostumava pela primeira vez a ter necessidade sanguínea, seus olhos lacrimejaram quando ela conseguiu tocar a mesa. Os alhos foram amassados com a ponta dos dedos.
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segunda-feira, setembro 01, 2008
Cócegas
Ele tinha tudo dela se pedisse naquele momento. Deitada, ela só implorava:
# Me dá mais anestesia, me dá mais anestesia.
O dentista achou estranho porque nem 2 minutos tinham se passado e o efeito ainda estava por vir.
# Está desconfortável? # A mesma da semana passada, Mãah respondeu. # Mesma? # A anestesia, por favor.
O barulhinho do motor na sala ao lado sumia lentamente enquanto que a agulha fina penetrava no interior rosa da bochecha e ele a amaciava.
Será que o sangue acumula-se? Enrije-se quando o líquido entra? – ela pensava. Quero ir embora logo.
# Falta pouco, Mãah. #Arrã.
Ele usou a broca. Puxou com força. Raiz profunda. Seja meu amigo, ela pensava.
# Ã – Mãah resmungou. # Dói? – ele perguntou. # Arrã. # Vou colocar bem perto do dente.
Mais um pouco do líquido. Ela fechou os olhos, não gostava de ver seu próprio sangue. Ele ligou o computador e colocou uma música de rock dos anos 80. INXS? Tears for Fears? Odiava o som do teclado da década. Mas imaginou-se envolta a uma luz roxa, pisando em nuvens, com guitarristas cabeludos cantando: What are you waiting for?
Foi quando a pressão soltou-se e ela percebeu-se que o dente tinha sido extraído. Ele costurou delicadamente, usando sua eficaz linha preta. Cócegas adentravam seu bulbo capilar.
# Se sentir dor, é só tomar um analgésico. # Arrã. # Daqui uma semana você volta para tirar o ponto. # Arrã. # Tchau. # Arrã.
Mãah abriu a porta, desceu as escadas e caminhou pelas ruas. Explodia de felicidade bafuda. Enquanto seus pés tocavam o chão, as pessoas brilhavam lentamente. Mexer a mão era como um gozo pueril. As pessoas que a tocavam descuidadosamente pela calçada não imaginavam que, mesmo com a bochecha enrijecida, ela sorria. Sorria porque estava tendo o maior barato. Maior que o da semana passada. Entrou no supermercado e acariciou todos os produtos coloridos enlatados. Quando chegasse em casa, viria a larica.
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