quinta-feira, novembro 30, 2006

Encantado dia chuvoso

Zacarias pisou no chão frio da gruta. Seus pés deslizaram pelo limo, mas ele se agarrou a uma folha de samambaia. Debaixo de seus pés, grossas peles cascudas e sujas. Esta é uma história da cidade, vinda de uma história do mar.

Os pescadores de Ilha Grande dizem que havia um gigante que comia morangos mofados do outro lado da ilha. Ele se escondia dentro de uma pequena caverna, encurvado e cheirando a frutas estragadas. O cheiro se alastrava quando ele ia dormir. Línguas d’água escorregadias percorriam quilômetros da praia, fazendo com que turistas fossem mantidos afastados. Segundo os pescadores, o gigante escondia tesouros embaixo de suas axilas, ao redor de suas pernas e ao longo de seu tronco. Como vivia agachado, muitas pessoas não percebiam nada quando chegavam perto.

Zacarias atravessou a trilha entre Dois Rios e Parnaioca. Viu uma família de macacos bugios caminhando pelas copas das árvores e fileiras de formigas enganando cigarras. Precisava se concentrar e sentir o cheiro podre. Zacarias tremeu a língua contra o palato produzindo um som universal de chamada de cães e o gigante se mexeu. Agarrou uma samambaia quando o odor fez seu corpo se curvar para trás. Um barulho de terra sendo remexida logo fez com que seu pé deslizasse. Ele seria o único ser humano que veria um gigante em toda a História da Humanidade. A ganância de desvendar o desconhecido fê-lo agarrar um cipó marrom. Sentiu as pisadas chegando mais perto. Era um encantado dia chuvoso e Zacarias começava a formar um pequeno sorriso de vitória quando um chimpanzé puxou seu rabo marrom das mãos dele, fazendo-o escorregar pedra abaixo. A terra vibrou e ele ainda pode ver o gigantesco amontoado de macacos envolta dele. O sangue escorria face abaixo. Zacarias piscou uma vez. O chimpanzé, com o rabo machucado, jogou uma pedra na direção de Zacarias. Os outros macacos fizeram o mesmo. Logo depois limparam suas nádegas com dedos e folhas. O cheiro podre vem agora de um Zacarias falecido.



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quarta-feira, novembro 29, 2006

Sábado

Dia singelo em uma tarde branda de sábado. Ela abriu a janela e viu uma bicicleta passar. Levava consigo um rapaz na garupa, que acenou alegremente. Doa a quem doer, ela decidiu passar os dias contando as rolinhas. Uma pílula para a dor do braço e uma rolinha no quintal do vizinho.

Quantas vezes pensou poder agarrar o tempo e dizer a ele que matematicamente pertencemos a diversas dimensões. Quantas vezes pensou que o futuro não era nada além de simetrias fabricadas por um imperador na Roma Antiga entediado.

O que era o comércio a não ser moedas de cunhagem? O que era a tecnologia a não ser gotículas de bits processados? O que era a sua vida a não ser uma imobilidade frasal?

Zenaide queria correr. Desfrutar do oxigênio terrestre. Colher a água que jorra do cano. Mas o tédio vital que corria em sua veia e paralisava seu músculo só a deixou esmagar uma joaninha. A vida não era processada e sim adiada dia após dia. A joaninha era uma reles piada da natureza.



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terça-feira, novembro 28, 2006

De grátis

O que um dia Godofredo, o garçom, queria falar:

CLIENTE PARA GODÔ: Você trabalha aqui?
GODOFREDO: Não, minha roupa é amostra grátis de OMO.



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segunda-feira, novembro 27, 2006

Moleskine

Ele ouvia Kate Bush, Babooshka na rádio ambiente do trabalho. Queria ser roteirista. Ter suas idéias compradas por Bollywood. Rejeitava o sonho americano.

Acabara de ler que em nome do Islã, exércitos recrutados tinham fundado um novo Império, o Califado, que incluiu grande parte do território Bizantino e todo o Sassânida (onde é hoje o Irã e Iraque, mais a Ásia Central adentro), e estendeu-se da Ásia Central até a Espanha. Agora sempre divagava sobre a cultura dos povos árabes, já que sua ignorância histórica acabara levando-o a comprar um livro para desvendar a razão de tantos corpos mutilados hoje em dia. Na verdade, só havia comprado o livro porque fora influenciado por um documentário sobre um homem-bomba.

Ele achava que muçulmanos eram cidadãos e não seguidores de uma religião. Quão grande foi sua surpresa ao lembrar do livro e ver um alvoroço no saguão do local onde trabalhava.

Regra 7 de todo roteirista aspirante: eles sempre têm um emprego estável para pagar suas idas a filmes cult e festivais internacionais. Betinho abraçou seu Moleskine, pois ele se sentia meio Baudelaire naquele ano. 9 euros era dinheiro pouco para Europa, mas 150 reais era dinheiro mais caro que seu dentista no Brasil.

Dentro da Bovespa um homem saído de um Califado da 25 de Março gritava que ia explodir o banco.

Merda, Betinho se abaixou.

No café da manhã havia tirado um biscoitinho da sorte que dizia que idéias não permanecem em certas cabeças por muito tempo porque não gostam de confinamento solitário.

Ficou tentando adivinhar de onde vinha aquele homem cabeludo que tinha fita crepe agarrada a seu corpo. Descendente do Império Bizantino ou o Sassânida? Será que ele também havia estudado sobre a vida de Ibn Khaldun?

O homem gritava que queria que o prédio fosse esvaziado. Betinho queria escrever em seu Moleskine. E se ele morresse ali? O caderno seria salvo?

Sua idéia saiu de seu confinamento solitário particular e Betinho levantou seus braços, gritando para o suposto homem-bomba:

# Islã é a religião que segue o Corão!

Dane-se se ele explodir a Bolsa de Valores de São Paulo! O que são investimentos quando se tem Moleskines inspiradores? O segurança repetiu a frase para o homem todo de preto.

# Islã é a religião que segue o Corão.

O homem-bomba brasileiro respondeu:

# Eu vou acionar os explosivos!

# O mundo de Ibn Khaldun pode parecer eterno, colega, mas esse mundo foi substituído, gritou Betinho.

O homem-bomba que havia comprado uma toca do tipo ninja deu um passo atrás.

A polícia interditou a XV de Novembro. As dependências do pregão paulista não chegaram a ser evacuadas e os negócios não foram suspensos em nenhum momento. Betinho continuou a falar sobre a explosiva situação do Oriente Médio. O homem-bomba, que se dizia ex-jornalista disse baixinho que só queria chamar atenção da mídia para poder fazer um filme contra o sistema financeiro. Betinho e o homem-bomba apertaram as mãos no hall do prédio. Se o filme fosse feito, Betinho seria o roteirista.

Às 17h20 o futuro cineasta se entregou. Por ter sido pego em flagrante pode pegar de um a três anos de detenção por causa do incidente. Cronograma estipulado para Betinho agilizar seus amigos produtores e escrever o primeiro draft de sua vida.

Agradeceu mentalmente Ibn. Seu povo pertencia a uma cultura de extraordinária riqueza.






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sexta-feira, novembro 24, 2006

O pulo

Seu sonho de criança era pular em uma cama elástica. Realizou-se na festa de fim de ano do trabalho. Pulou cerca de 15 minutos. Era estabanada. O cadarço do tênis agarrou em um gancho e ela caiu de cara no ferro. 15 pontos na testa e um dente quebrado.

Sonho requer sacrifício.



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quinta-feira, novembro 23, 2006

O garoto que tinha caspas

Eu era um pequeno estranho abandonado. Devo dizer, filho do meio.

O sofrimento do filho do meio: tudo sempre está bom para ele. Não somos os preferidos e sim os mais compreensivos. Aqueles que agradam os pais por sempre estarem no meio. Os apaziguadores, os solteirões. A realidade dos filhos do meio é penosa. Pensamos na carreira porque nossos pais querem isso. Namoramos muito, mas não conseguimos um relacionamento estável. Os filhos do meio fazem mais terapia porque demoram mais tempo para se rebelarem.

Eu comecei a rebelião depois que meu irmão mais velho estava no doutorado e minha irmã mais nova prestes a casar.

Cá estava bebendo Ice naquela noite. Quando bebo Ice imagino uma menina de polainas vermelhas ou brancas, depende da ocasião. Sonho que ela é interpretada pela Angelina Jolie ou alguma atriz polêmica. Não, Angelina, não. Agora ela é mãe, não quer mais posar nua. Geralmente é Angelina, mas vou ter que pensar em outras opções. Bem, ela sempre tira a polaina e canta Madonna. Ao invés de prestar atenção à boca despudorada, meus olhos se fixam na batata saliente. Quero observar a boca impetuosa, mas meus olhos não desgrudam da musculatura perfeita da batata. Fico assim até que a música termine e Angelina soletre: Um menino em um caminho solitário. Não sei porque ela soletra, deve ser trauma de infância, por ter visto demais aquele filme da menina que soletrava liberdade na sessão da tarde. Não, acho que vi mais no SBT. Enfim, a cena é sempre tão real que quase esqueço que sou eu que invento.

Naquela noite minha mãe interrompeu meu devaneio antes de Angelina começar a soletrar solitário. Minha mãe subiu as escadinhas do terraço aos berros.

# Alberto! Alberto!

Às vezes esqueço que me deram esse nome porque todos me chamam de Adidas. Os apelidos são criados e nós os adotamos por sermos convenientemente incapazes de desagradar um amigo que te faz o favor de mudar seu nome de batismo. Como aquele padrinho que te dá suporte nos momentos difíceis. O apelido é um esconderijo. Apesar de que não sei porque me chamam assim, eu nem mesmo uso essa marca.

A terceira vez que minha mãe gritou Alberto, lembrei de meu avô. Um jovem senhor que morreu de ataque do coração e que disse seu próprio nome antes de falecer.

Meu pai colocou o nome no filho do meio porque minha mãe esperava uma menina e não um menino.

Quando eu me virei ao perceber o quarto Alberto gritado, ela bufou logo:

# Alberto. Você tem caspas.

Minha mãe consegue comer scargot, tirar caracóis e lesmas do jardim, mas tem nojo de couro cabeludo descamado.

# Amanhã você vai ao dermatologista.

Eu nem coçava a cabeça, como podia ter caspas?

Comecei o tratamento em duas semanas. Minha mãe evitava lavar minhas toalhas e elas começaram a apodrecer em cima da minha cama. Quanto mais shampoo anticaspas eu botava na cabeça, mas partículas brancas se desprendiam de mim.

Primeiro foram as toalhas, depois meus pentes foram esterilizados. Em dois dias minha mãe não entrava mais no meu quarto. Colocava minha comida no carpete e saía. No meio do Natal me deu um abraço com touca térmica.

Eu estava livre das explicações e ela da paparicação do meio.

Quão feliz fiquei ao derramar o vidro de shampoo e trocar às idas ao dermatologista por aulas de guitarra elétrica. Desde então, meu cabelo ensebado vem crescendo desproporcionalmente.





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quarta-feira, novembro 22, 2006

Clotilde

Lininha Trope lia shampoo no banho, era fã de Charles Bronson e ouvia Good Times 98. Graças a Deus não tinha mais o cabelo cachorrona.

Lininha era totalmente influenciável. Aprendeu com Sérgio Trajano, um professor de história que desenha um peixinho chamado Clotilde em todas as aulas, que o riso era a melhor escapatória para quem quisesse controlar a situação. Então para não ser controlada, ela inventava as situações mais esdrúxulas para sobreviver.

Foi idéia dela se fantasiar de Mamãe Noel e sair pela chaminé sem pagar o racha da Ceia.

Foi ela quem resolveu abrir o champagne e jogar na bisavó que jurava não usar peruca.

Foi ela quem pediu a forma emprestada para fazer um bolo para a tia e nunca devolveu.

Ela sempre saía ilesa porque o riso acalmava os bolsos alheios.

Nada como uma boa companhia em uma boa tarde. Foi assim que conheceu Kleber Roberto. Ele trabalhava na antiga Mesbla no Passeio e conquistou Lininha porque sabia as falas de Charles Bronson em Desejo de Matar IV. Além disso, havia sido dublê do ator em um bico em Justiça Selvagem.

Foi em uma tarde alaranjada, churrasco ao ar livre, que Kleber Roberto chamou atenção dos parentes.

Lininha estava preparando a maionese e retirando todas as maçãs uvas passas porque o namorado tinha problemas com elas quando escutou a risada da parentada. Até as crianças vibravam. As mesmas crianças que notaram que a Mamãe Noel tinha um peito maior que o outro.

Quando abriu o portãozinho de madeira descascado, seu namorado dublê de Bronson estava dando um amasso a la Dona Flor e seus dois maridos na tia mais nova de Lininha. Segundo os sobrinhos, ele estava imitando uma cena e ensinando a tática do beijo sem língua.

A raiva que subiu no coração de Lininha não era de ciúmes e sim de inveja, popularmente conhecida como despeito.

Ela suava freneticamente. Lembrou de Clotilde. Foi por causa de Clotilde que começara a gostar de história. Lembrou de como Napoleão perdera a guerra.

De repente, tudo se acalmou. Até percebeu um sabiá indo comer banana.

Lininha Trope acabou de preparar com cuidado a maionese. Levou com carinho e educação um prato do alimento para seu amado.

Em 15 minutos Kleber Roberto foi parar no banheiro, entupindo o vaso, desmaiando por causa de sua pressão baixa e sendo levado para o hospital com o ânus sujo. As crianças riram.

Lininha desenhou um peixinho e colocou no bolso do dublê, junto com alguns pedacinhos de maçã.

Ele agora evita churrascos e ela namora o radialista do Mercadão de Sucessos só aos sábados.



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terça-feira, novembro 21, 2006

O vendedor de almas

Ela acreditava no amor piegas. E toda vez que gaguejava lembrava do bolo de chocolate que o menino da terceira série tinha lhe presenteado. Ela passou a vida não conseguindo perdoá-lo. Desaparecer e deixar suas bochechas avermelhadas. Suas cerejas eram imantadas por meninos de olhos verdes. Se ela não poderia tê-lo dentro do imo, mentiria para sempre até encontrar a válvula certa para seu coração.

Foi por isso que se casou. Trepava por suor. Despedaçando cada ingrediente de sua mente acabaria com cada substância doce enquanto era picada. Teria o coração rasgado por sêmen alheio, por pêlos que não caberiam em suas curvas. Ela ainda lembraria do menino da terceira série, porém. O único que dissera oi quando todos se foram. O menino que tinha os mesmos lápis de cor. Aquele que tinha o estojo azul de modelo igual ao dela.

Ela mentiria mais e mais para dormir com o travesseiro de penas. Quebraria todos os ossos, mas não conseguiria esquecer quando ele colocou seu cabelo atrás de suas orelhas de abano e disse: Você pode vender sua alma, mas não pode comprá-la de volta.

Anos depois descobrira que o menino era fã de Ben Harper quando ele deu uma palhinha em um show do Pearl Jam. Passou cinco anos repetindo a mesma música para que ele aparecesse na batente de sua janela. Mas o menino da terceira série não saía de sua lembrança e nem se materializava.

Dizem que muitas lembranças que temos são inventadas. Ela gostaria de ter certeza, mas não sabia mais agora. Para ela, o menino era um vendedor de almas. Tocava em cada menina para mostrar que a alma singular podia ser trocada por uns trocados de silêncio quando quem não queremos nos invade corpo adentro. Ele ensinou que antes de amar, ela deveria perdoar mil vezes.

Ela gostaria, mas continuou a repetir Ben Harper.



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segunda-feira, novembro 20, 2006

Salamandras não são jacarés

# Salamandras não são jacarés, Lorena.

Lorena abriu a porta da geladeira. Retirou um copo de água gelada. A modernidade de seu tempo era alívio para os preguiçosos e mais trabalho para as empregadas domésticas. Somente no Brasil a pessoa responsável pelo trabalho de casa ganhava pouco. Para todo o resto do mundo, essas pessoas eram luxo.

Ao engolir a substância potável viu os olhos brilhantes, ilustrados por óleo de Peroba. Os eletrodomésticos nos dominavam. Ela era mais uma escrava deles.

Enquanto o líquido escorria traquéia abaixo se deu conta que não tinha diversão sem TV, roupa lavada sem máquina, comida quente sem microondas, comunicação sem telefone.

Se ficasse sem computador, ficaria isolada. Se ficasse sem sofá, não estaria relaxada. Se ficasse sem bubble gum, não desenvolveria um calo no estômago. Um horror.

O copo estava suado. Lorena viu o computador e a TV prestes a atacá-la, mas o som começou a tocar It’s the end of the world...

A música salvou a menina. A sujeirinha que estava infiltrada no cantinho da geladeira foi ressaltada. Lorena gritou. A empregada acordou. Desceu as escadas correndo, quase tropeçando em sua camisola filó. A pobre coitada ainda estava meio que sonhando com Magal.

Lorena apontou para o local. A empregada logo viu que a filha da patroa teria a noite para atormentá-la.

# Salamandras não são jacarés, a filha da patroa disse.

Pensando em seu PIS, a pobre coitada esfregou com sabão Limpol a fresta de sujeira às três e quarenta da manhã. Lorena foi para cama e deitou-se em seu edredom MMartan. Amanhã, pensou, exploraria mais seu objeto preferido.



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sexta-feira, novembro 17, 2006

Gongolos

No Instituto Educacional Santa Inêz acharam 2 gongolos bivitelinos. Era hora do recreio e todas as crianças que não tinham piolhos se amontoavam perto do bebedouro para ver a vida estranha das criaturas.

Foi Clara Lee que cuspiu neles primeiro.

# Ele me faz enjoar.

# Eles, corrigiu João Carlos.

# Como você sabe?

# Meu avô tem olho de vidro. Eu sei.

# Olho de vidro?

# 10 centavos para ver.

O amontoado de crianças se juntou perto do banheiro para ver a peça preste a ser esterilizada.

Carlos Vinicius pisou sem querer nos gongolos a procura de seus 0,25 centavos. Os bivitelinos foram chutados para longe. CV correu. A fila para o olho já estava grande.




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quinta-feira, novembro 16, 2006

Água

Pingos de chuva caíram no balde por 14 horas seguidas. Isso irritou tanto uma dona de casa que ela mesma consertou o telhado. Agora entra água pela janela.



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quarta-feira, novembro 15, 2006

Festival de Pipas

Pipas era cinéfilo. Foi ao cinema pela primeira vez ainda bebê em um festival infantil. Aprendeu a reconhecer os créditos iniciais do filme antes mesmo de aprender a falar Claro que sim. O escuro o maravilhava. Não importava se era película, digitação ou animação. Era um viciado em histórias.

Há vícios e vícios. Vícios que envergonham e vícios considerados elegantes obsessões. Ele era o último a sair do cinema. Adorava ver a participação da equipe nos créditos finais. Foi assim que descobriu que a faxineira do blockbuster também trabalhara para o último cult de Cannes.

Googleou o nome da senhora e viu sua participação em mais de 80 filmes recentes. Era seu sonho. Obcecou-se.

Rasgou seu diploma de bacharel. Precisava estar em um set de filmagens.

Começou a se corresponder com Maria Luisa. Malu. Como era fácil encontrar um desconhecido com as teclas corretas!

Tornaram-se amigos. Ela lhe indicou para uma vaga de cableman. Ele pensou duas vezes e disse não.

Dia seguinte comprou chumbinho e colocou meticulosamente no dropis de anis de Malu. Enquanto chupava seu doce, a faxineira contava histórias engraçadas sobre seu trabalho, sobre os artistas mal-humorados, os técnicos engajados e os diretores estressados.

Dia seguinte Pipas tomou o lugar de Malu. Se você googlear o nome dele aparecerá em 12 filmes esse ano.



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terça-feira, novembro 14, 2006

Deveras

# Estou deveras consternada com a gordura da Beth.

# Você quer dizer, chocada?

# Como ela pode descer a um nível tão baixo?

# E você está muito Gisele Bündchen, né, amiga?

# Mas ela...

# Vanessa, olha para seu calcanhar. Deixa a pobre da Beth em paz. Se ela está feliz com o corpo que tem é o que importa. Odeio essa coisa de Barbie girl que colocam em nossa mente desde criança. Boticelli é que era o cara! Ninguém fica para sempre com o corpo de 15, Nessa. Devemos nos aceitar como somos. Dar valor ao que temos.

Página do Orkut, carregando.

# Repita comigo, Vanessa. Nós dev....

Página carregada.

# Ai, meu Deus, Vanessa! Ela tá grávida?



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segunda-feira, novembro 13, 2006

Ukelele

Ele se escondeu nas sombras. Cantou baixinho uma canção de algum irlandês desconhecido. Assobiou.

Gostaria de pisar no sol. Ver seus pés iluminados e a sujeirinha do canto de suas unhas.

Viu ao fundo um homem tocando ukelele e se escondeu. Mesmo estando fora da imensidão do local, era difícil alguém perceber um outro grudado nas sombras. Melhor assim. Aprendeu que a ignorância era uma benção.

Às vezes ele patinava no grande salão quando todos iam embora. Colocava um chinelo de flanela para não alterar o piso. Sabia que era sábio conservar sua moradia. Às vezes ele escalava as paredes para visualizar de cima como era bonita a arquitetura gótica. Como a lua de seu país era mais brilhante. Como os uivos eram sempre repetitivos. Como a reconstrução trazia mais pessoas ao lugar.

Cada novo dia o reflexo do sol ficava mais presente. Escadas, novas vidraças, mais luz entrando porta adentro. Como era tão belo o espelho solar. Como era tão aterrorizante a chegada da claridade.

Os homens trabalhadores não perceberam quando ele, acuado, soltou um grunhido e alimentou-se ferozmente de uma veia de um senhor de meia idade. As ferramentas braçais foram largadas. O ukelele não foi mais tocado. O terror espalhou-se de boca em boca.

Era seu lugar sagrado. Precisava preservá-lo. Mesmo que isso custasse uma maldição herdada por opção. Mesmo que todos o condenassem. Mesmo que fosse conhecido como pai de aberrações. A arquitetura era mais antiga que sua própria existência. Era seu papel guardá-la da memória curta dos homens de vida curta.

Os outros teriam a morte a temer, ele teria a longevidade.



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sexta-feira, novembro 10, 2006

As letras

Um dia Haianna recebeu uma carta.

É isso que você vai fazer o resto de sua vida?

Amassou o papel e redesenhou as letras.

Sim, era isso que faria. Passou o resquício de vida ilustrando. A beleza dos traços das letras encantou o mundo monocromático das teclas ocidentais. O bordado espalhou-se pelo planeta. E ela nem tinha feito curso de desenho.



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quinta-feira, novembro 09, 2006

O sujeito que amara o mundo

Ele era um gordo de cabelos enrolados. Apelidaram-no de Cortés. Não haverá exposição de seu nome real por respeito à família.

O sr. Cortés ofereceu muito dinheiro para ir àquela viagem interplanetária. Era seu sonho trabalhar na Nasa, mas ele havia sido reprovado duas vezes em matemática.

Por anos o sr. Cortés almejou seu sonho. O que o levou a transformá-lo em objetivo. Quando o sr. Cortés alcançou o outono de sua vida ele viu pela sua TV Uol wireless que ainda tinha uma vaga para uma viagem de fim de semana a um planeta anão. Seu mantra tinha então chegado a seu estado alfa. Incansavelmente o sr. Cortés repetia fielmente todas as manhães antes de seu pão com ovo: NAM MIORRÔ RENGUE KIÔ.

Agora na frente de seu Mega Mac cinza seu objetivo tornava-se uma possibilidade sólida.

Quando o agente disse sim ao monte de euros expostos em uma escrivaninha que custava dólares, os olhos de sr. Cortés encheram-se de lágrimas.

Ele se viu de volta ao tempo, quando era menino e jogava seu chapéu de cowboy para cima e uivava para o céu de estrelas. Ele agora veria o mundo de cima.

Quando a pressão alcançou o nível apropriado e os turistas interplanetários começaram a flutuar no espaço da nave, o sr. Cortés repetiu uma frase de um escritor há séculos falecido:

# A beleza podia ser tão enjoativa quanto trufas de chocolate.

Graham Greene estava certo. Doía o olho. A beleza da Terra azul no meio de uma imensidão negra trazia agonia ao coração do sr. Cortés.

Ele amava seu mundo. Agora tinha certeza.

Quando pousaram no planeta-anão número 327, o oxigênio entrou no pulmão dos turistas como água com gás.

Mas sr. Cortés estava feliz demais para perceber a hostilidade do lugar. As pessoas se espalharam pelos campos esverdeados, a procura de alguma diversão terrestre. Sr. Cortés ficou parado, admirando a realização de seu sonho.

No topo de um morro, um menininho com olhos vibrantes assoprava bolhinhas de sabão. Sr. Cortés se aproximou. De repente, ao longe, gritos. Mas sr. Cortés estava encantado demais com a cena angelical. Um cheiro de menta vinha da direção do menino. Sr. Cortés sorriu. O menino sorriu de volta.

Entretanto, sr. Cortés não percebeu quando a terceira bolha de sabão, feita por um material corrosivo, atingiu seu estômago. Quando se deu conta tinha um buraco entre as costelas, igual tiro de escopeta.

Sr. Cortés piscou os olhos. O menino também.

Sr. Cortés só teve tempo de dizer:

# Por que garoto? Por quê?

O menino continuou a assoprar as bolhas mortais. Ele não entendia a língua de sr. Cortés. Pertencia a outra cultura.



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quarta-feira, novembro 08, 2006

O poder do milênio

Era uma vez um planeta que tinha 3 pessoas. Elas foram avisadas que o mundo ia acabar na virada do milênio. Era um dia que a neve caía graciosamente. Cada pessoa fugia com seu objeto pessoal de mais intenso valor. Glenda Melo levava seu álbum de fotografias. Sonia Jung um livro antigo sobre mitos e História. Lyz levou seu Macbook preto modelo , wireless, conexão interplanetária, com toda sua mina de networking. Elas entraram em um pequeno foguete e viram o mundo despedaçar-se. Glenda Melo chorou. Lembrou da primeira flor que regara no local. Sonia Jung sorriu porque não agüentava mais o calor do local e dava graças a deus por estar em um lugar com ar-condicionado. Lyz estava ocupada. O Orkut tinha mais uma novidade para ela explorar.



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terça-feira, novembro 07, 2006

Aline

Aline abriu o olho. Cama fofa. Travesseiro de ervas.
“Você acordou, querida?”
Uma piscadela. Duas.
“Será que estou...”
“Bem, bem... Não era isso que você queria?”
Aline mexe a cabeça. Branco insuportável em tudo. Limpeza total.
“Angelina.”
“Fui mais conhecida como sua mãe, não?”
“Mãe?”
“Que merda você fez com seu corpo agora, menina?”
“Corpo?”
“Presa nessa cama, com os batimentos contados. Você ainda tem medo de morrer, bonequinha?”
Braços presos, pernas atachadas. Aline com lábios cortados.
“Do que você está falando?”
“Era disso que você fugia, não? Da sua vida? Da sua mente?”
“Eu quero ir embora daqui.”
“Sempre querendo ir embora, sua vadia. Sempre fugindo das merdas. Inconseqüente. Retardada. É isso que você faz na vida, sua ingrata?”
“Mãe, me tira daqui!”
Aline se desprende da cama. Abre a porta. Nenhuma janela. Escada longa e alta. Aline sobe. Sobe. Sobe. Bate em outra porta. Sobe. Bate em outra porta. Desce escada em espiral.
“Angelina! Me tira daqui!”
Abre mais uma porta.
“Ai, Aline. Que coisa. Para que você vai correr tanto? Você só tem 48 horas de vida mesmo.”



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segunda-feira, novembro 06, 2006

Os dias

Os dias. Criados para corresponder ao mínimo divisor comum de 29 dias, um ciclo lunar. Instrumento de medição de tempo. Ninguém sabe quando e onde começamos a contá-los, mas foram estabelecidos para linkar diversos tipos de calendários com os eventos geológicos.

Dies Solis. Segunda. Mardi. Mittwoch. Giovedi. Yom shishi. Lördag.

Dia de sol. Dia de chuva. Dia quente. Dia frio.

Para alguns eles significam aprisionamentos, para outros de que a gravidade age sobre o corpo mais rápido depois dos 15. Para Nadynne era simplesmente o amanhã e o hoje. Ela havia ignorado todo o passado. Rabiscado todos os resquícios de memórias. Usado uma doença para retirá-las fisicamente. Em conseqüência teria só mais alguns meses de vida. Mas não importava porque os dias eram eternos em sua mente. Eternos a ponto de esquecê-los no dia seguinte.

Mas em algum canto de sua capacidade cerebral, talvez nos famosos supostos porcentos não utilizados, ela carregava uma cena atemporal.

Era um menino. Um menino que coloca um caixote de madeira no escorregador. Uma tábua e 1 lixeira de plástico do parque na ponta onde ele supostamente vai cair. O menino entra dentro do caixote e escorrega. É no tempo de uma gargalhada que dura o tempo.

Um outro garoto fala:
# Ô, moleque. Você quer quebrar a cabeça?

E o menino passa a escorregar com a lixeira na cabeça.

Para Nadynne a cena se repete antes de perder todas as outras. Esses são os dias onde a vida pulsa mais intensamente, onde a consciência se segura em um espaço de vácuo. Segundo Roland Barthes, a força de toda vida viva: o esquecimento.

Antes de dormir, Nadynne sobe no escorregador. Ela e o menino se espremem no brinquedo de madeira. Eles descem juntos, mãos para cima. É no decorrer dessa memória que ela esquece o decorrer.



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sexta-feira, novembro 03, 2006

Os grilos estropiados

Criaturinhas pinicavam seu corpo. As pessoas que têm mortes trágicas trazem na alma um ar de mistério. Durante a vida a morte não os atinge, ou se chega perto é por questão de segundos. Como se fossem de cristais.

Nívea teve uma vida bela. Talvez fosse isso que estivesse pensando quando os minutos finais rondaram seu corpo. A vida em flashes, fotos envelhecidas, fotologs eternos. Imagens de quando jogou bolinhas no cesto. O menino que chupava gelos de manhã. Seu primo dizendo que veria Chaves até ficar velhinho. Alguém correndo atrás de babuínos. Seus pés no fundo da cachoeira. Seu último beijo. A noite misteriosa do pátio.

Ela era a menininha que usava a mochila do cometa Halley. Que decifrou o mapa de Talma, seu vizinho, para achar o tesouro no fundo de seu quintal. 30% da vida de momentos felizes, 70% de brigas, dúvidas, crises existenciais e reclamações. Mas 30% ainda era um número considerável.

Quando saiu de carro em direção ao aeroporto notou que era um dia xonho, dia sem cor. Como se todo o colorido tivesse sido congelado.

Não vou levar a vida a sério, pensou. Não vou sair dela viva mesmo.

Balançou os cabelos e girou a chave da ignição. 24 horas depois seu nome estava na lista dos passageiros do avião que tinha caído em uma região de difícil acesso. Mutilações e rajadas de fogo. Ela só pensava Ainda estou viva.

E estava. Estava mais que pulsante. Estava lúcida.

Quando anoiteceu, lembrou da longa cauda vermelha do cometa Halley. Como aos 5 anos ficou tempo com a mão sobre a sobrancelha, olho brilhante, testemunha secular. A rede de cricrilos.

Nívea estava com os pés no fundo do tempo. Por mais que tentasse evitar a distensibilidade, os arroios de sangue voltavam. O vento sempre era quente no Brasil. Vinha com um calor do mar, aquecedor, renovador. Mesmo se você estivesse milhas longe do oceano, perto do coração da selva.

Havia pedras filosofais a seu redor. Juntamente com carne humana, sangria, fumaça e cheiros fortes. Imaginou-se uma Lostie. Teria sido polpada para resolver seu problema interno? Mas qual era seu problema?

Continuou olhando pro céu. Adormeceu.

# Mandei pegar estrelas para vigiar teu sonho – sua mãe dizia.

Quando acordou o sol estava forte. Os grilos estropiados tinham partido. Viu aviões percorrendo o céu.

# Aqui, sussurrou. Estou aqui.

Os aviões deram voltas o dia inteiro. Mas ela foi achada somente dia seguinte, devorada por porcos selvagens.



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quinta-feira, novembro 02, 2006

Pré-hemp hour

Abriu corretamente o maço. Tragou o conteúdo todo, inalando a substância. Deitou-se suavemente na relva marítima. Flutuou silenciosamente nas cavernas de Petar. Respeitava a fauna cavernícola. Estalactites era o nome de seu peixe dourado. São Paulo era seu protetor. Viu o amanhecer no vale.

Era sonho. Seu décimo terceiro estava atrasado.



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quarta-feira, novembro 01, 2006

O esquilo de Piabetá

Coisas estranhas acontecem na vida. Um caminhão de colchões explode pela manhã. Engarrafamento. Dez horas na ponte e as luzes se apagam.

O homem que vende balas de felicidade, mastigáveis, a preço de sonho. Layla, a cachorrinha, contente. Tudo na vida dura exatamente o tempo certo para não termos certeza. E assim o dia de Tina terminou. Certo, mas questionável.

Era febre do shopping e, como toda boa consumidora feminina, foi em busca de pechinchas. Não precisava de nada, mas era altamente influenciável por comerciais de TV. Tinha uma concunhada que trabalhava na Adidas, talvez passasse por lá.

Antes de subir as escadas, se deparou com uma curiosidade. Uma criança de 2 anos era jogada para o alto, indo parar quase no terceiro andar, o andar das lojas mais caras.

SPACE JUMP – Seja radical e venha se divertir muito!

Sim, era isso que ela precisava! Esbravejar seus hormônios. Chegar ao terceiro andar pelo menos voando.

Venha saltar e dar pulinhos no ar!

Seus pés estavam apertados dentro de uma sandália trançada, mas deu uma corridinha básica. A criança estava sendo desamarrada. Pais orgulhosos. Fotos de celular.

Tina poderia ser livre. Poderia dar um mortal! Poderia dar um grito sem ser olhada de rabo de olho. Poderia babar! Grunhar! Terminar o dia feliz.

Foi barrada pela orientação dos monitores.

Desaconselhável para GORDOS, gestantes, hipertensos e cardíacos. Entre 10kg e 80kg.

Mas ela era alta! 84, fartura muscular e um não bem na cara. Se sentiu um esquilo de Piabetá. Foi para Adidas e torrou seu cartão de crédito em roupas de ginástica. Parcelado em 6 vezes, sem juros. Ela vai se matricular na academia daqui a uma semana, irá 3 vezes no mês seguinte, depois doará as roupas para caridade. A última parcela só será paga ano que vem.




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